Auxílio emergencial expõe o Brasil real, pobre, excluído e dependente do Estado
Em meio a agravamento da pandemia, fim do programa deve deixar 48 milhões de brasileiros à própria sorte
Marcado pela pandemia do novo coronavírus, 2020 chegou ao fim nesta quinta-feira (31). Junto com o ano, termina também o auxílio emergencial , programa que foi a principal ou única renda de cerca de 68 milhões de brasileiros em boa parte do ano. Com os depósitos finalizados, 2021 terá apenas os saques finais do auxílio, previstos para terminar em 27 de janeiro .
Pago aos trabalhadores mais afetados pela crise, especialmente informais e desempregados sem direito ao seguro-desemprego, o auxílio emergencial foi o motor da economia em 2020 e, além disso, escancarou os "invisíveis" do Brasil real, milhões de brasileiros excluídos do mercado de trabalho e que, com o fim do programa de transferência de renda, estão à própria sorte. Uma parte do universo de beneficiários retorna ao Bolsa Família, que deverá atender cerca de 19 milhões no próximo ano.
Quem não tem direito ao Bolsa Família e perde o auxílio emergencial, por enquanto, terá de se virar em 2021. Nem o aumento de casos de Covid-19 e a possibilidade de uma segunda onda no Brasil fizeram, em 2020, o governo se programar para ampliar o auxílio ou, de algum jeito, assistir esses cerca de 48 milhões que, de repente, serão jogados à "vida normal" , como cobra o presidente Jair Bolsonaro , embora a situação brasileira e mundial ainda esteja longe da normalidade. Enquanto alguns países se vacinam, o Brasil assiste e sequer tem um plano de imunização traçado. Até a compra de seringas parece tarefa complicada .
Nos últimos meses, a tendência do mercado de trabalho é desanimadora. Após o corte do valor do auxílio, que passou de R$ 600 para R$ 300 e ganhou regras mais duras , que excluíram milhões de pessoas dos pagamentos finais, e com os menores níveis de isolamento social , mais pessoas voltaram a procurar emprego. Em outubro, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o desemprego passou a atingir 14,1 milhões de brasileiros , com os índices de informalidade disparando e chegando a 38,8% da população ocupada, um recorde.
Para 2021, o cenário não é animador. Embora o governo celebre a alta dos empregos com carteira assinada , o fim do auxílio emergencial e o protagonismo cada vez maior da informalidade ligam alerta. Sem ajuda do Estado com o corte dos R$ 300 que antes eram R$ 600, o desemprego deve subir ainda mais. Sem auxílio, mais pessoas buscarão emprego, naturalmente.
Dependência do auxílio
De acordo com o Ministério da Cidadania, os programas de transferência de renda conseguiram, em 2020, conter a extrema pobreza em 80%. Atualmente, cerca de 2,1% da população vive nessa situação, mas sem os auxílios criados durante a crise, especialmente o 'coronavoucher', 12,4% da população estaria na extrema pobreza.
Segundo a pesquisa PNAD Covid-19, do IBGE, o auxílio emergencial esteve presente em cerca de 40% das residências brasileiras, sendo que, em julho, esse número atingiu o pico de 44,1% dos lares no país.
Nas regiões Norte e Nordeste , o auxílio chegou a mais da metade das casas. Em maio, 54,8% dos lares nordestinos recebiam, e, em agosto, na região Norte a marca atingiu 61%. Também no mês de agosto, o valor médio do auxílio emergencial atingiu seu ponto alto: R$ 916 por residência beneficiada.
"Serão dezenas de milhares de pessoas jogadas na miséria [com o fim do auxílio emergencial]", alerta Sergio Takemoto, presidente da Federação Nacional das Associações do Pessoal da Caixa Econômica Federal (Fenae). Ele complementa ainda que "quem mais sofre e continuará padecendo com esta crise sem precedentes é a população mais vulnerável".
De acordo com pesquisa Datafolha , o auxílio era, em dezembro, a única renda de 36% dos entrevistados que receberam alguma parcela do benefício em 2020. Em agosto, esse percentual era maior, de 44%.
Segundo o levantamento, 75% das famílias disseram que a redução do valor do auxílio de R$ 600 para R$ 300 provocou o recuo nas compras de alimentos . 55% precisaram deixar de pagar as contas de casa. Com o fim do auxílio, a tendência, de acordo com o Datafolha, é que o endividamento aumente e a alimentação piore.
Desorganização, filas e lentidão marcaram os pagamentos do auxílio
Se o benefício foi a salvação de muitas famílias em 2020, para muitos ele também foi dor de cabeça. A dificuldade em organizar as agências para receber os milhões de beneficiários fizeram muitos enfrentarem filas, aglomerações e, em alguns casos, passarem até 15 horas esperando para ter o dinheiro.
As indefinições também chegaram a atrasar os pagamentos. A segunda parcela do auxílio, em maio, ficou mais de 15 dias atrasada , sem um calendário de pagamentos, deixando aflitos os milhões de brasileiros que tentavam se cadastrar para receber e passaram dias, semanas ou até meses "em análise" .
O aplicativo Caixa TEM , pelo qual os beneficiários do auxílio emergencial e os trabalhadores com contas do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço ( FGTS ) movimentam os recursos, também tiraram o sono de muita gente. A lentidão do sistema , que chegou a cair em mais de uma oportunidade , preocupou beneficiários, e muitos chegaram a precisar tentar acessar o aplicativo de madrugada, quando menos pessoas estariam usando e sobrecarregando a base de dados. Precisar do dinheiro e não conseguir usar foi rotina para muitos, o que também colaborou para as aglomerações nas agências da Caixa pelo Brasil. Sem acesso ao aplicativo, muitos recorreram a ajuda dos bancários, que, nesses casos, pouco ou nada puderam fazer. Virtualmente, as filas também marcaram presença.
Fraudes envolveram nomes como Neymar e Luciano Hang, o 'Véio da Havan'
Políticos, influenciadores e nomes como o do empresário bolsonarista Luciano Hang, o ' Véio da Havan ', o do craque Neymar e até mesmo o do ministro da Economia, Paulo Guedes estiveram envolvidos em fraudes do auxílio emergencial. Mesmo sem terem solicitado o benefício, eles apareceram na lista dos que pediram e, em alguns casos, chegaram a receber o dinheiro.
Uma série de operações da Polícia Federal desmantelaram quadrilhas que se especializaram em fraudar o auxílio, mas os pagamentos indevidos marcaram todo o processo de liberação dos recursos. Até mesmo traficantes presos solicitaram e conseguiram receber o dinheiro .
Escândalos envolvendo políticos milionários e também militares de altas patentes foram revelados. No segundo caso, que ocorreu em maio, 190 mil militares da ativa receberam o benefício de forma irregular , revelou o jornalista Vicente Nunes, do Correio Braziliense. O valor total dos pagamentos chegou a R$ 113.816.990,00.
Auxílio alavancou popularidade, mas Bolsonaro e Guedes reclamaram do alto custo
Uma das principais realizações do governo de Jair Bolsonaro, o auxílio emergencial, ideia do Congresso Nacional e que só chegou ao valor inicial de R$ 600 por pressão dos parlamentares, já que o governo queria pagar parcelas menores, foi e ainda é decisivo para a avaliação popular do presidente, que, no entanto, sempre fez questão de dizer que o benefício é "muito caro" , temporário e "não é uma aposentadoria" .
Em agosto, quando o auxílio emergencial viveu seu auge, com valor médio de R$ 916, a popularidade de Bolsonaro também subiu ao maior nível desde o início do mandato: sua aprovação foi a 37%, e a rejeição despencou de 44%, em junho, a 34% dois meses depois, de acordo com levantamento do Datafolha .
Com o benefício surtindo efeito na economia, evitando a perda de renda de milhões de brasileiros durante os nove pagamentos, divididos em cinco parcelas de R$ 600 e quatro de R$ 300, o governo seguiu se posicionando de forma contrária a uma nova ampliação. Até esta sexta-feira, 1º de janeiro, nem sinal de que o benefício terá novas parcelas.
Guedes já chegou a dizer que, se houver segunda onda da Covid-19, o governo poderia estender o auxílio , mas recuou. Em seu discurso, o ministro prega o respeito ao teto de gastos acima de tudo. Bolsonaro segue a mesma linha e fala em " endividamento monstruoso " para atuar contra novas parcelas do auxílio. O presidente já chegou até mesmo a associar o programa a "demagogos e comunistas" , ao dizer que "O Auxílio Emergencial, infelizmente para os demagogos e comunistas, não pode ser para sempre". Bolsonaro também brigou com governadores e disse que o auxílio pode "quebrar o país", cobrando rigor fiscal e defendendo o respeito ao teto de gastos como "trilho da economia".
O governo chegou a desenhar o Renda Brasil , que virou Renda Cidadã , mas não saiu do papel. O programa seria uma espécie de "aterrisagem suave" após o fim do auxílio emergencial, uma remodelação do Bolsa Família para incluir os "invisíveis" que o governo "descobriu" com o auxílio. Sem encontrar os recursos para financiar o 'novo Bolsa Família', o governo desistiu e começará 2021 deixando milhões no aperto e, a princípio, sem renda.
No Senado, há uma proposta pronta para ampliar o auxílio até março , congressistas também buscam ampliar o estado de calamidade pública para flexibilizar o teto de gastos e permitir que o enfrentamento à pandemia siga tendo recursos em 2021, mas o ano novo começa como o antigo terminou: cercado por incertezas, tanto em relação a economia quanto a saúde pública. Mais de 193 mil brasileiros já morreram vítimas da Covid-19, e se Bolsonaro diz para " perguntar para o vírus " se o auxílio será prorrogado em 2021, a resposta, por enquanto, parece ser sim. Os casos estão em alta no Brasil e no mundo , inclusive em países que já estão se vacinando.
** Gabriel Guedes é editor de Brasil Econômico e Tecnologia do iG. Começou no Portal como estagiário, na semana do primeiro turno das eleições de 2018. Formado em jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero, tem passagem pela Rádio Gazeta Online, antiga Gazeta AM.