A situação no Brasil anda tão emocionante e os fatos estranhos têm se sucedido com tanta velocidade que as pessoas acabam não prestando a devida atenção ao que se passa no mundo .
O país anda tão voltado para dentro de si mesmo, tão envolvido com os próprios problemas, que pouca gente é capaz de imaginar que uma decisão tomada pela Organização Mundial do Comércio (OMC) em relação a um contencioso que há 15 anos envolve a Boeing e a Airbus pode, sim, ter reflexos na economia brasileira.
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Pela decisão da OMC, os Estados Unidos podem impor retaliações comerciais
à União Europeia até o valor de US$ 7,49 bilhões por ano. A causa da medida são os subsídios para lá de generosos que o bloco concedeu ao fabricante de aviões.
Em tempo: os principais acionistas da Airbus são os governos da França, da Alemanha, da Espanha e da Grã Bretanha, que demonstra cada vez menos vontade de deixar a União Europeia.
Toma lá, dá cá
A briga entre as duas gigantes da aviação mundial é interessante e a decisão tomada pelo organismo internacional, justa e necessária.
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Como os países da União Europeia, a começar pela França, injetaram dinheiro público na Airbus para tornar seus projetos mais competitivos, os Estados Unidos poderão, a partir do próximo dia 18, impor sobretaxa
a produtos que tem origem nos países do bloco.
Entre as mercadorias que podem ter as importações sobretaxadas estão vinhos, queijos, azeitonas, azeite de oliva, produtos de origem suína e outros artigos que nem de longe estão relacionados com a produção de aviões.
Atenção! A decisão da OMC não significa que a Airbus é a única culpada nessa história nem equivale a um atestado de bons antecedentes para a Boeing.
No primeiro semestre do ano que vem será a vez do organismo internacional avaliar, a pedido da União Europeia, se as práticas do governo de Washington em relação a seu fabricante de aviões não podem ser, também, motivo para que a Europa faça restrições à entrada de produtos americanos em seu mercado.
Quem conhecesse esse processo acredita que o pau que bate em Chico bate também em Francisco. Ou seja: a Boieng contou com benefícios muito parecidos com os que os Estados Unidos acusam a Europa de conceder à Airbus.
E o Brasil?
O governo francês foi o primeiro a reagir à decisão e prometeu endurecer o jogo em suas relações comerciais caso os Estados Unidos queiram, de fato, fazer valer o direito sancionado pela OMC.
Tanto assim que o ministro da Economia de Emmanuel Macron, Bruno de La Maire, elevou o tom de voz para anunciar que seu país vai liderar as represálias e, quando for chegada a hora, sobretaxar produtos americanos caso os Estados Unidos queriam fazer valer o direito que lhe foi conferido pela OMC.
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Na mesma declaração, de La Maire pediu que os Estados Unidos
não adotem sanções antes de negociar — algo que os franceses se recusaram a fazer enquanto o projeto ainda tramitava em Genebra, a sede do organismo internacional.
Tudo o que os franceses não querem é que essa briga respingue em setores essenciais para sua economia interna. A pergunta é: o que o Brasil tem a ver com isso? A resposta é: muita coisa.
Nem é o caso de reafirmar aqui que, no comércio mundial, as desavenças entre os grandes sempre acabam repercutindo de forma negativa sobre os pequenos. Nem de afirmar que as restrições americanas a alimentos produzidos na Europa podem, no limite, beneficiar o agronegócio brasileiro.
O que esse episódio oferece é uma oportunidade de ouro de reflexão sobre a situação do Brasil. Berço da terceira maior fabricante do mundo, a Embraer , o país assistiu recentemente uma discussão mesquinha em torno do financiamento que o BNDES concedeu a alguns empresários que adquiriram aviões da companhia.
Tratava-se, na visão dos críticos, um favor que o banco público estaria prestando não à Embraer, mas aos compradores, e, por isso, tinha que ser eliminado.
Incentivo e protecionismo
Ninguém está defendendo, aqui, que o Brasil passe a injetar dinheiro do Tesouro para beneficiar a indústria. Além de não dispor de recursos, esse tipo de prática, no limite, torna as empresas viciadas e, ao invés de aumentar, acaba tirando sua competitividade.
Mesmo assim, o processo que teve a decisão final esta semana e também ou outro, que será julgado no próximo ano, pode servir de exemplo ao Brasil . E pode mesmo.
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Em primeiro lugar, mostram que os principais governos do mundo consideram tão importante apoiar sua indústria de ponta
que não se acanham na hora de lançar mão de práticas que eles condenam para os demais.
Essas práticas, em seu limite, os leva injetar dinheiro em indústrias estratégicas que, além de desenvolvedoras de tecnologias, são geradoras intensivas de empregos . Quando se trata de suas próprias indústrias, o apoio é considerado um incentivo.
Quando a indústria é dos outros, a prática passa a ser vista como protecionismo . O que a OMC condenou foi a injeção direta de dinheiro público no desenvolvimento dos projetos da Airbus.
Caso a organização se debruçasse, também, sobre os mecanismos de financiamento concedidos aos compradores dos aviões, a retaliação teria que alcançar valores bem mais elevados do que os US$ 7,49 bilhões autorizados pela OMC.
Ajudar os compradores de seus aviões com financiamentos generosos é um hábito tão antigo que, pode-se dizer, faz parte do DNA da empresa europeia.
Enquanto viveu, o comandante Rolim Amaro, fundador da TAM (que depois seria adquirida pela chilena LAN e se transformaria na Latam) nunca escondeu de ninguém que a decisão de modernizar a frota de sua companhia com modelos da Airbus — e não de sua preferida, a Boeing — se deveu única e exclusivamente às condições de financiamento vantajosas que recebeu.
Enquanto isso, no Brasil, a prática do banco oficial de fomento de conceder empréstimo a juros competitivos para empresários comprarem jatinhos foi tratada como um pecado indesculpável.
Ladeira abaixo
O tratamento tacanho, retrógrado e obtuso dado à indústria brasileira ajuda a explicar a rota descendente que as empresas desse setor, com raras exceções, vem percorrendo no Século 21. Para começar, o país não tem uma política industrial coerente, que discipline o funcionamento do parque produtivo com normas minimamente claras.
Essas empresas também são, além disso, submetidas a uma carga tributária que tira sua competitividade como se fosse um peso de 50 quilos em cada pé de um corredor de maratona.
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Tem a obrigação de arcar com encargos trabalhistas
que, ao mesmo tempo que representam um fardo para o empresário, deixam vazios os bolsos dos empregados. Diante de tudo isso, a indústria brasileira (ou melhor, o que restou dela depois dos equívocos cometidos a partir de 2003) é uma sobrevivente cada vez mais mirrada.
Como nada no curto prazo indica uma mudança cenário, a lição que fica é a de que a recuperação da economia dificilmente contará, desta vez, com o estímulo que os empregos gerados pela indústria sempre representaram nos momentos de dificuldade.
Para sair do buraco, o país precisa mudar muita coisa e a fila das mudanças é puxada pela necessidade de uma nova mentalidade. Se continuar acreditando que uma política industrial coerente não é necessária para o crescimento, pode tirar o cavalinho da chuva.
Sem uma mudança na forma de encarar sua economia , a recuperação a que já será difícil com ela, se mostrará praticamente impossível.