Apenas duas pessoas no planeta inteiro, e mais ninguém, têm a lucrar com o bate-boca inconsequente que se prolonga entre o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, e o presidente da França, Emmanuel Macron.
Leia mais: As fogueiras de Bolsonaro
E essas pessoas são justamente os dois protagonistas, que trocam insultos e fazem pirraça um para o outro desde que o francês reagiu aos incêndios da Amazônia
com uma postagem nas redes sociais. Ali, ele publicou e tratou como atual a imagem antiga de um incêndio na mata e chamou de “nossa casa” a floresta brasileira. Foi o que bastou para que o bafafá começasse.
Antes de prosseguir, convém deixar claro: este texto não trata da necessidade de se preservar a Amazônia . A manutenção da maior floresta nativa do mundo é fundamental para a sobrevivência da humanidade e tudo o que se fizer em nome dessa causa é uma medida civilizatória.
Brasil rejeita ajuda financeira do G7 para Amazônia
A intenção, aqui, é falar apenas da troca de ofensas
, que em nada contribuiu para o avanço dos debates sobre o tema. A única utilidade da quizumba que sem sentido entre “les deux présidents” foi a de inflamar a torcida de cada um dos lados e permitir que cada um deles varressem para debaixo do tapete os problemas que os dois países estão vivendo.
O pitbull e o poodle
No caso de Macron, o problema tem a ver com a necessidade de se equilibrar entre sua profunda dependência política da liderança da primeira ministra da Alemanha, Angela Merckel e a pressão intensa que sofre dentro de (essa, sim) sua própria casa. Sim.
Macron precisa fazer para o mundo um discurso que não agrada a seus eleitores e, nesse cenário, Bolsonaro é o melhor adversário que ele poderia ter. O francês se queixa de ter sido ofendido por Bolsonaro e, nesse ponto, tem sua dose de razão.
Mas, ofensa por ofensa, o presidente americano Donald Trump também pôs o dedo numa ferida não cicatrizada e Macron não reagiu com a mesma fúria. O presidente americano disse que, se não fosse a ajuda dos Estados Unidos, hoje os franceses estariam falando alemão.
A frase remete a uma das lembranças mais dolorosas da história do país de Macron. Trata-se da o cupação nazista da qual a França, ajoelhada como estava, jamais sairia sem o apoio americano. Por mais verdadeira que seja, a imagem fere o brio dos franceses, que nunca reagiram bem a essa lembrança.
Para agradar EUA, Bolsonaro ataca maiores parceiros comerciais do Brasil
O presidente francês, no entanto, preferiu fechar os ouvidos para as ofensas de Trump
. Talvez por considerá-lo um pitt bull, ficou calado diante do que ouviu. Quanto a Bolsonaro, o tratou como se fosse um poodle — que pode ser desafiado sem que isso traga maiores consequências. Por mais barulho que faça, ele jamais oferecerá perigo.
Previsível e Inábil
Macron, que na primeira hora havia reagido com entusiasmo ao acordo do Mercosul com a União Europeia, logo se arrependeu. E passou a procurar uma forma de retirar seu apoio assim que os ruralistas de seu país , sobretudo os pecuaristas, reagiam ao pacto comercial com medo da concorrência que teria que enfrentar dentro da própria casa.
No país de Macron, os fazendeiros formam uma corporação poderosa e barulhenta. Até pouco tempo atrás, embolsavam um valor fixo para cada vaca que mantinham no rebanho (como se cada animal tivesse direito a uma espécie de salário para produzir leite).
A mamata só acabou por exigência da União Europeia — que não achou justo que o continente inteiro continuasse financiando a indolência dos fazendeiros franceses.
Seja como for, diante da reação da corporação rural, Macron se pôs a procurar uma saída honrosa , que lhe permitisse ficar bem com seu público doméstico sem ter que divergir dos lideres internacionais que lhe dão apoio no continente.
A resposta previsível e inábil de Bolsonaro pareceu ter sido feita sob encomenda para o não menos previsível e nem mais hábil presidente francês.
Cortina de fumaça
A preocupação de Macron com a causa que ele abraçou de forma tão determinada ao chamar o Brasil para a briga em torno da Amazônia, parece tão genuína quanto a defesa que o ditador venezuelano Nicolas Maduro faz dos direitos humanos.
Se seu propósito ambiental fosse sincero, ele já teria reagido à decisão da Justiça Francesa, que considerou a qualidade do ar de Paris um problema de Estado, e tomado alguma providência para reduzir a poluição.
Ou, ainda, teria pelo menos manifestado preocupação, ainda que mínima, com o ouro garimpado ilegalmente, com uso de mercúrio, nos rios da Guiana Francesa
, na mesma Amazônia que ele diz querer proteger do fogo.
Ao chamar o presidente brasileiro para a briga, ele procurou uma forma de ficar bem com os dois lados que realmente interessam à sua política. Será que vai dar certo?
É pouco provável que dê, mas parece que tanto ele quanto Bolsonaro estão empenhados em insistir no confronto até porque manter a discussão acesa, ao contrário do que recomenda o bom senso, é interessante para os dois. Apenas aos dois e a seus projetos políticos.
Sem querer fazer trocadilho com os efeitos das queimadas na mata, ambos lucram ao querer manter os problemas graves que suas administrações enfrentam escondidos atrás de uma cortina de fumaça.
Esforço de uma maratona
O lucro para Macron é evidente. Mas, e Bolsonaro? O que ganha com essa situação? Ganha, sobretudo, tempo. A economia brasileira segue se desmilinguindo e nenhuma decisão anunciada nos últimos anos parece ter forças para produzir efeitos positivos.
As reformas se arrastam com lentidão e os passo adiante mobilizam tantos interesses contrários que parecem exigir o mesmo esforço de uma maratona. Na medida em que o ano se aproxima do fim, fica clara a distância que separavam as previsões otimistas do início do ano da dura realidade que aguardava o novo governo.
Em janeiro, a previsão de crescimento, que serviu de base para a elaboração do orçamento da União para 2019, era de 2,5%. Quando se viu que a realidade não se comportaria conforme o desejo de quem estimou as despesas do governo, o número começou a baixar.
Em maio, de acordo com os dados oficiais, a previsão de expansão em 2019 já havia baixado para 1,6%. Em junho, caiu para 1%. De acordo com os números mais recentes, referentes a junho, o crescimento será de 0,8%. Deve cair mais até dezembro.
Ambulâncias paradas
O problema é que, enquanto as despesas foram calculadas com base numa economia que cresceria a 2,5%, as receitas insistem em acompanhar os números reais do mercado.
E isso provoca a sensação de que o governo está segurando o dinheiro que deveria usar para pagar as despesas previstas no orçamento quando, na verdade, ele não consegue arrecadar o suficiente para fazer o que pretendia.
A equipe econômica de Bolsonaro tem feito tudo o que está a seu alcance para conseguir dinheiro e manter a máquina em operação. O problema é que o trabalho está cada vez mais difícil e até as fontes alternativas para as quais ela tem apelado correm o risco de secar.
Na segunda-feira, o ministro da Economia Paulo Guedes anunciou mais uma dessas medidas que lembram o ato desesperado de quem vasculha o armário da despensa para ver se encontra pelo menos meio quilo de feijão para matar a fome no almoço.
O governo quer que a Caixa e o BNDES antecipem ao Tesouro Nacional o pagamento de R$ 13 bilhões dos dividendos que distribuiriam a seu único acionista caso apurassem lucro em seus balanços. Ou seja: quer adiantado um dinheiro que ninguém tem certeza se existe.
Com esse valor, ele conseguiria recursos para desbloquear as verbas previstas no orçamento e que devem ser liberadas para que a administração não pare. O problema é que não é a primeira vez que isso acontece.
A todo instante surgem informações de que o governo corre atrás de trocados para quitar os boletos atrasados e impedir que os Serviços Públicos entrem em colapso de uma vez por todas.
Atenção: por Serviços Públicos, aqui, entende-se aqueles que são realmente essenciais, como, por exemplo, as ambulâncias do SAMU , que prestam o primeiro atendimento a pessoas acidentadas ou que demandam alguma remoção de urgência para algum hospital.
No primeiro semestre de 2018 elas somaram R$ 16 bilhões. No primeiro semestre deste ano, caíram para R$ 9,2 bilhões .
Veja também: O dinheiro Acabou. E agora?
Dívida bruta
Os números que revelam a precariedade das contas do governo constam do Boletim Macro Fiscal referente a julho de 2019, divulgado na segunda-feira passada pela Secretaria de Política Econômica (SPE) do Ministério da Economia.
Na linguagem enviesada dos textos oficiais, o documento informa que, nos últimos anos, o país sofreu uma “queda substancial de produtividade aliada a um quadro de descontrole fiscal”.
Tradução: a economia real , aquela que põe comida na mesa do brasileiro que está fora do serviço público, despencou. E o governo, por um tempo, continuou esbanjando dinheiro como se não houvesse problema.
Por essa razão, a “ dívida bruta do governo geral passou de 51% do PIB em dezembro de 2013 para 77% do PIB em dezembro de 2018, ao passo que a dívida líquida do setor público aumentou de 30% para 53% no mesmo período”, diz o Boletim da SPE.
Dívida líquida, no caso, é aquela que exige dinheiro vivo para ser girada no dia a dia. Trata-se, grosseiramente, dos recursos que o governo precisa ter na conta corrente para conseguir pagar os juros que prometeu em troca dos títulos que lançou no mercado.
Dívida bruta é o estoque dos títulos públicos em poder do mercado. É lógico que, para um governo com problemas dessa magnitude, é muito mais conveniente manter aceso o bate boca com Macron do que encontrar uma solução definitiva para a crise.
Isso exigiria medidas reais de estímulo à economia e, também a redução das despesas fixas. Essas despesas estão majoritariamente atreladas aos salários dos servidores. Sua redução passa, obrigatoriamente, pelo enfrentamento às corporações mais poderosas.
Corporações que são tratadas pelos governos brasileiros (o de Bolsonaro, inclusive) como os agricultores franceses são tratados por Macron: se a farinha é pouca, o primeiro pirão, com certeza, é o delas.