O país anda tão mergulhado em seus próprios problemas que muita gente tem se esquecido de prestar atenção às decisões internacionais que afetam diretamente seus interesses e podem prejudicar ainda mais a combalida economia do país.
Foi o que aconteceu, por exemplo, no início da semana, com o avanço das negociações entre os
Estados Unidos e a China para colocar um ponto final na guerra comercial
que vêm travando desde a posse de Donald Trump.
EUA e China chegam a acordo que pode dar trégua à guerra comercial; entenda
No início de agosto passado, foi dito neste espaço que o acordo entre as duas potências era uma questão de tempo não por rendição dos chineses, mas por pressão dos agricultores
americanos.
No calor das desavenças, eles viram a queda acentuada de suas exportações de soja para a potência oriental. Não gostaram da situação e passaram a exigir que o governo encontrasse um jeito de não prejudicá-los.
Pois bem: o pré-acordo que Trump espera ratificar no próximo mês prevê como a contrapartida chinesa para a redução das sobretaxas sobre produtos chineses o aumento das exportações de grãos, exatamente como exigia o secretário da Agricultura dos Estados Unidos Sonny Perdue.
Artigo: Briga de cachorro grande
Ex-governador da Georgia e defensor intransigente dos interesses dos agricultores
, Perdue chegou a anunciar, ainda no mês de julho passado, que o acordo sairia em poucos meses. Ele previu, inclusive que o aumento imediato das exportações dos grãos
seria de 20 milhões de toneladas.
Para comprar toda essa soja dos americanos, os chineses terão que deixar de comprá-la de seu outro grande fornecedor: o Brasil.
Os culpados de sempre
Não há nada de errado com os movimentos de Perdue na defesa
dos interesses de sua
pasta.
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Em qualquer país sensato do mundo as pessoas consideram uma obrigação do responsável por um ministério (ou secretaria, como as pastas são chamadas nos Estados Unidos) a implementação de políticas públicas
voltadas para os interesses dos segmentos sob sua responsabilidade.
Nada mais natural, por mais acaciana que a frase pareça, que um secretário da Agricultura faça o que estiver a seu alcance para beneficiar os agricultores. Tal obviedade, que vale para qualquer lugar do mundo, não se aplica ao Brasil.
Por aqui, tem gente que protesta toda vez que a ministra Tereza Cristina ergue a voz em defesa do campo.
Na opinião de certas militâncias urbanas, a ministra deveria unir sua voz ao coro dos que se juntam em frente ao MASP, em São Paulo, ou na Cinelândia, no Rio de Janeiro e exigem que o mundo deixe de comprar alimentos brasileiros em protesto contra os incêndios na Amazônia.
Calma! Os incêndios na Amazônia são extremamente graves e o governo federal, bem como os governos estaduais, têm a obrigação de combate-los e de punir quem os provoca — sejam eles fazendeiros, grileiros, indígenas ou militantes interessados em ver a floresta pegar fogo.
Mas daí a atribuir ao agronegócio a culpa pelos incêndios seria o mesmo que responsabilizar os pescadores do porto de Mucuripe, em Fortaleza, pelo derramamento de óleo que (diante do silêncio das organizações ambientalistas) vem empesteando as praias do Nordeste: além de uma estupidez sem tamanho, seria uma injustiça descomunal.
Queda na safra
Mas isso não importa e parece que, por vias indiretas, a turma que defende esse tipo de insensatez logo terá o que comemorar: as dificuldades que atingiram o conjunto da economia nos últimos anos, parece que finalmente estão chegando ao campo.
Na semana passada, o Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea), de Piracicaba, divulgou os números do PIB Agrícola Brasileiro referentes a julho deste ano — e eles não são tão viçosos como os dos anos anteriores.
Pelo levantamento do Cepea, que é ligado à Escola Superior de Agricultura Luíz de Queiroz, da USP, feito com o apoio da Confederação Nacional da Agricultura, a produção rural
, que se notabilizou como o único braço dinâmico da economia brasileira nos momentos mais agudos da atual crise econômica, começa a dar sinais de perda de fôlego.
No conjunto, os negócios do campo tiverem, entre janeiro e junho, um crescimento modesto , de apenas 0,64% em relação ao ano passado. O número é preocupante. Esse crescimento discreto só foi possível porque a pecuária — que sempre andou atrás da produção de grãos na formação do PIB do campo — desta vez saltou na frente.
Entre janeiro e julho deste ano, estimulada pelo aumento da demanda mundial por proteína
animal, a produção de carnes cresceu 7,04% em relação aos mesmos sete meses de 2018. A safra de grãos
, no entanto, recuou 1,75% em relação ao ano anterior.
A queda foi motivada por um conjunto de fatores que começam pela redução das chuvas em relação à safra passada, passam pela redução dos preços de algumas commodities importantes e, claro, desaguam nas condições gerais da economia brasileira — que, como é obvio, acabaram repercutindo negativamente sobre o campo.
Num cenário como esse, ao invés de proteger o que dá certo
, o Brasil faz exatamente o
contrário.
Amigos, amigos...
O silêncio do governo brasileiro em relação aos termos do acordo entre as duas maiores potências econômicas do mundo é preocupante.
Nenhuma autoridade por aqui abriu a boca para se queixar dos prejuízos que virão com o aumento dos volumes das exportações de soja, de milho e de derivados da carne de porco dos Estados Unidos para a China causará um prejuízo monumental
ao campo brasileiro.
Análise: Mudar para ficar igual
Isso mesmo. Dizer que os Estados Unidos
venderão mais alimentos para a China
implica dizer, na mesma frase, que o Brasil passará a vender menos. Parece que a enorme simpatia que o deputado Eduardo Bolsonaro
tem pela família do presidente Donald Trump não será suficiente para livrar o Brasil de uma realidade incômoda.
O campo dos Estados Unidos é o maior adversário do único setor produtivo dinâmico na economia brasileira — o agronegócio . Cada vez que um militante na Avenida Paulista ergue um cartaz criticando a produção rural brasileira, um fazendeiro bate palmas na Georgia. E a vida segue.