A despeito do fascínio reverente que as elites e os intelectuais brasileiros sempre tiveram pelas luzes de Paris; e, também, a despeito da atração que o ar tropical sempre exerceu sobre antropólogos e artistas franceses, ninguém com um mínimo de informação sobre as relações entre os dois países se arriscaria a chamá-los de amigos.
Fome, Brasil e indígena: o que protagoniza os discursos dos presidentes na ONU
Nem cometeria a imprudência de convidá-los para a mesma festa sem a precaução de manter um afastado do outro. A chance de haver alguma rusga
entre seus representantes não é recente.
As desavenças são persistentes e pode-se dizer que entre os dois já houve faíscas bem mais perigosas do que essas que Jair Bolsonaro e Emmanuel Macron insistiram mais uma vez em manter acesas em seus discursos na sessão de abertura da Assembleia Geral da ONU , na última terça-feira.
A troca de alfinetadas entre os dois presidentes no plenário na ONU pode ser explicado por um velho ditado no idioma de Macron: “plus ça change, plus c’est la même chose”. Ou, numa tradução livre, quanto mais as coisas mudam, mais elas permanecem as mesmas
.
A briga é antiga e começou séculos atrás, antes que ganhassem corpo as divergências sobre as queimadas na Amazônia — um desentendimento estimulado pela disputa comercial que os dois países mantêm no palco do agronegócio mundial.
Como já foi dito neste espaço dias atrás, só Macron e Bolsonaro têm a ganhar com essa rusga sem sentido que, por conveniência de um e de outro não será resolvida enquanto estiverem no poder. Isso é ruim.
Não pelos efeitos do desentendimento em si, mas, no caso específico do Brasil, desviar a atenção daquilo que de fato interessa: a recuperação da economia .
A seriedade do Brasil
O que se vê agora é mais um capítulo de uma incompatibilidade que atravessa os séculos, nunca gerou nada de positivo para o Brasil e não será agora que deve gerar.
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Elas incluíram duas tentativas de conquista de parte do território brasileiro
pelos franceses. A primeira foi liderada por Nicolau Villegaignon, no Rio de Janeiro em 1555. A outra por Daniel de La Touche, no Maranhão, em 1612. As desavenças não pararam por aí.
Logo que a família real portuguesa se instalou no Rio de Janeiro em 1808, depois de deixar Lisboa para fugir das tropas do imperador Napoleão Bonaparte , o príncipe regente dom João decidiu ir à forra.
E ordenou a invasão de Caiena, capital do território francês na Amazônia, o que foi feito sem grandes esforços militares, com o uso de apenas três navios. Com a queda de Napoleão e depois de uma série de negociações e tratados, a Guiana foi devolvida aos franceses e a vida seguiu.
Houve, é claro, tentativas de apaziguar os ânimos, mas volta e meia algum fato surgia para deixar os dois novamente em campos opostos. Já no Século 20, houve a Guerra das Lagostas — episódio de 1961 em que barcos franceses foram flagrados pescando o crustáceo na costa de Pernambuco, em águas territoriais brasileiras.
O então presidente Jânio Quadros mandou a Marinha e a Força Aérea Brasileira expulsar os invasores. A diplomacia entrou em campo e, do conflito, restou apenas a frase atribuída ao presidente francês Charles de Gaulle: “o Brasil não é um país sério”.
Detalhe: o mar territorial brasileiro, naquele momento, era de apenas 12 milhas náuticas a contar da costa — e não das atuais 200 milhas.
De mal um com o outro
Antes de chegar às rusgas entre Bolsonaro e Macron, houve outros episódios de maior ou menos gravidade que, se não chegaram a mobilizar tropas, causaram mal estar entre os dois países.
Em 1989, na festa pelos 200 anos da Revolução Francesa, o presidente José Sarney recebeu tratamento de segunda classe e instalado num lugar afastado do salão em que o presidente francês François Mitterand se cercou dos líderes dos países que ele considerava relevantes.
Mais recentemente, e depois de um lento trabalho de aproximação iniciado por Fernando Henrique Cardoso, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva chegou a anunciar a escolha do francês Rafale como o caça que reequiparia a Força Aérea Brasileira.
Os franceses, comemoraram o contrato milionário, mas no final a disputa foi vencida pelos suecos, com seu Gripen — o que desagradou profundamente o governo francês.
Diante de um histórico como esse, estranho seria se dois presidentes que tanto necessitam se se afirmar internamente, que não têm base parlamentar consistente e que dependem do apoio da opinião pública para governar, desperdiçassem a oportunidade de ouro que o calendário lhes proporcionou de levar para a tribuna da Assembleia Geral da ONU a briga em torno da Amazônia.
Bolsonaro afirmou que a Amazônia é brasileira e ponto final. Macron disse, ao fim e ao cabo, que o mundo não pode continuar comprando alimentos de países que não zelam pelo meio ambiente. Nenhum chamou o outro pelo nome. Afinal, estão de mal.
As visões sobre o Estado
No caso das palavras de Bolsonaro o que se pode dizer é que elas nada contribuíram para melhorar o ambiente econômico no país — mas o efeito do discurso do presidente sobre a economia brasileira seria exatamente o mesmo caso ele, ao invés de dizer o que disse, reproduzisse palavra por palavra o que Luiz Inácio Lula da Silva falou da mesma tribuna dez anos atrás.
Naquela oportunidade, Lula se queixou dos países ricos, habituados a “lançar sobre os ombros dos mais pobres responsabilidades que são suas”. Dez anos depois, foi a vez de Bolsonaro se queixar de “países que ainda enxergam o Brasil como uma colônia”.
São, ressalvadas as diferenças de tom e de estilo, formas distintas de se referir ao mesmo problema: a forma como os países desenvolvidos tratam o Brasil. É evidente que existe um abismo intransponível entre o modo de um e do outro encararem o mundo.
Enquanto Lula, no discurso de 2009, falava da “doutrina absurda de que os mercados podiam autorregular-se” e criticava a “apologia perversa ao Estado mínimo ”, Bolsonaro afirmou dez anos depois, que “não pode haver liberdade política sem que haja liberdade econômica ”.
Essa, talvez, seja a única diferença que realmente interessa entre as posições dos dois presidentes. Lula defendia abertamente a ampliação da presença estatal, enquanto Bolsonaro, pelo menos no discurso, defende o fortalecimento do lado privado da economia.
O caminho que Lula apontava como solução, como bem demonstra a crise em que o país se meteu, não deu certo. Resta esperar que a receita proposta por Bolsonaro seja de fato implementada e tenha mais sucesso.
No que diz respeito ao sentido das palavras ditas por Bolsonaro, o discurso chama atenção exatamente pelo que esperava que: o presidente brasileiro não está disposto — por falta de interesse ou por não saber agir de outra maneira — a seguir o mesmo caminho de seus antecessores.
Tanto o que ele falou, quanto as reações às suas palavras foram mais previsíveis do que as badaladas do Big Ben ao meio dia em Londres. Os que já o apoiavam, consideraram sua participação uma obra de estadista. Os que já o consideraram um presidente raso e nocivo não mudaram sua opinião.
E o tempo que se perde discutindo esse tipo de problema leva a crer que está tudo seguindo pelo melhor caminho, quando todo mundo está cansado de saber que os problemas se acumulam .