Demissão do ex-secretário da Receita Federal, Marcos Cintra, foi ocasionada por defender moldes tradicionais da CPMF
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Demissão do ex-secretário da Receita Federal, Marcos Cintra, foi ocasionada por defender moldes tradicionais da CPMF

Quanto mais se fala em Reforma Tributária , que aos trancos e barrancos avança no Congresso Nacional, menos de trata daquele que é o verdadeiro problema fiscal do Estado brasileiro: o excesso e a qualidade sofrível das despesas.

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Com uma carga tributária que supera 35% do PIB, o país tem a voracidade fiscal de um país milionário. No que se refere à devolução desse dinheiro para sociedade, na forma de um serviço público eficiente e universalizado, a qualidade é rasteira como a dos países mais atrasados do mundo.

Nos anos 1980, o economista Edmar Bacha criou a expressão Belíndia, para falar de um Brasil que combinava bolsões de desenvolvimento equivalentes à Bélgica com indicadores sociais comparáveis aos da Índia. Hoje, essa comparação já não faz sentido — mesmo porque, de lá para cá, os indicadores sociais da Índia evoluíram bem mais do que os do Brasil.

Mais adequado, hoje, seria falar numa Dinéria, onde uma voracidade fiscal equivale à da Dinamarca, um dos países que mais garantem o bem-estar à sua população, convive com um serviço público de qualidade comparável a de países atrasados como a Nigéria, na África.

Soluções criativas

O Brasil é assim por uma única razão. Enquanto no mundo desenvolvido o dinheiro dos impostos serve para manter a máquina pública funcionando em benefício do cidadão, por aqui, a receita fiscal é utilizada para pagar salários gordos e para encher os bolsos dos representantes das corporações mais privilegiadas.

Uma reforma fiscal por aqui, para ser séria, teria que começar pela redução dos privilégios concedidos às corporações mais privilegiadas. Para equilibrar o jogo, deveria ser criada uma Secretaria da Despesa Federal com poderes equivalentes aos da Receita . Fica a dica.

A solução, no entanto, nunca é a da redução. Sempre que as corporações se queixam do quinhão do dinheiro do povo que alimenta seus holerites, soluções “criativas”, como as reclamadas recentemente pelo procurador Leonardo Azeredo dos Santos, do Ministério Público de Minas Gerais, são exigidas.

Os representantes das corporações mais poderosas sempre pedem mais e o governo, para atende-los, sempre dá um jeito de empilhar mais um imposto sobre as costas do cidadão. Só que a sociedade, ainda mais em meio a uma crise para a qual foi empurrada justamente pelo uso populista dos recursos públicos, já não quer arcar com mais impostos além dos que já paga.

Jesus Cristo e renda mínima

Ministra do Ministério da Mulher, da Familia e dos Direitos Humanos, Damares Alves, defende a religião
Luciano Claudino/Código19/Agência O Globo - 8.8.19
Ministra do Ministério da Mulher, da Familia e dos Direitos Humanos, Damares Alves, defende a religião

Prova disso foi a onda criada em torno do processo que resultou na demissão do ex-secretário da Receita Federal , Marcos Cintra. Ele perdeu o cargo esta semana, supostamente por defender abertamente a criação de um tributo nos mesmos moldes da CPMF , que existiu no Brasil entre nos anos 1990.

Se é verdade que as ideias tributárias de Cintra, por mais estapafúrdias que sejam, tiveram algum peso na saída do economista do cargo que ocupava, pode-se dizer que, num ambiente onde a norma é mudar de ideia a todo instante, Cintra foi demitido por cometer crime de coerência.

Demitir o ex-Secretário por essa razão seria o mesmo que tirar o cargo da ministra dos Direitos Humanos, Damares Alves por falar em Jesus Cristo toda vez que abre a boca para um pronunciamento oficial. Ou ter cassado o ex-senador Eduardo Suplicy, que hoje não tem mandato, por defender com insistência o programa de Renda Mínima.

Cintra defende essa modalidade de arrecadação desde os anos 1980 e até hoje acredita que um tributo sobre as transações financeiras é a forma mais eficaz e menos trabalhosa de tirar dinheiro do cidadão. Se ele caiu não foi porque defendia isso, mas porque resolveu comprar briga com corporações poderosas ao mesmo tempo.

Muito se comentou que o secretário caiu por falta de habilidade no trato com os deputados e senadores que, nesta legislatura, assumiram publicamente o hábito de fazer birra contra as propostas do governo a cada vez que não são atendidos em seus pedidos por cargos e verbas. Isso talvez tenha contribuído para tornar o ar na Esplanada dos Ministérios irrespirável para Cintra. Mas também pesou contra ele a rejeição a seu nome por parte dos “técnicos” da Receita Federal — que fazem questão de ter alguém “de carreira” no comando da instituição. 

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Ter no comando alguém da casa, aceito pelos colegas, em cargos estratégicos não é, por si só, a garantia de que as coisas funcionarão dentro dos princípios da lei da moralidade. Isso vale para qualquer órgão poderoso, seja ele a Receita Federal, o Ministério Público ou a Petrobras.

Conforme observa o advogado João Santana, que foi ministro da Infra-Estrutura no governo Collor, se aprovação em concurso garantisse lisura e competência, Paulo Roberto Costa e Nestor Cerveró, para citar apenas dois funcionários da estatal do petróleo, não teriam se envolvido nos escândalos que protagonizaram.

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A reação das corporações

Marcos Cintra era contrário, por exemplo, ao pagamento do adicional que os auditores da Receita Federal recebem sobre as multas que aplicam. Isso mesmo: fiscal da receita, no Brasil, recebe um dinheiro extra por fazer o trabalho para o qual foi contratado.

É o mesmo que achar correto, por exemplo, que um maquinista do metrô ganhe um adicional por passageiro transportado ou que um ascensorista receba um extra a cada vez que o elevador parar num determinado andar. Mas, como sempre acontece com as corporações mais poderosas, os auditores da Receita não gostaram e se rebelaram contra Cintra. Enquanto esteve no cargo, o ex-secretário teve contra ele, para dizer o mínimo, a má vontade da corporação.

A corporação é poderosa e bem organizada. Em agosto passado, o ministro Bruno Dantas, do Tribunal de Contas da União, se pronunciou contra o adicional de R$ 3000 que os auditores recebem para cumprir sua obrigação. Três dias depois, Dantas recebeu do órgão uma notificação que o obrigava a comprovar uma despesa médica realizada em 2015.

Isso é mais comum do que se pensa: sempre que alguém ousa levantar a voz contra as soluções “criativas” que as corporações encontram para levar mais dinheiro do contribuinte para os próprios bolsos, elas se organizam e se voltam contra quem ousou chamar atenção para o quadro.

Reclamação singela

O caso contra Dantas não é exclusivo nem os auditores da Receita a única corporação que usa o poder da caneta que segura para punir quem ousa contrariá-la. Ficaram famosas no Brasil, em 2016, as ações que juízes do Paraná moveram contra jornalistas do jornal Gazeta do Povo, que ousaram, a partir de dados publicados no Portal da Transparência, dizer que os magistrados tinham vencimentos muito superiores aos que a lei estabelecia para o cargo que ocupavam.

Usando seu poder, os magistrados se disseram ofendidos pelas reportagens, obrigavam os jornalistas a fazer. A punição só foi suspensa porque a ministra Rosa Weber, do STF, interveio e baixou uma decisão liminar contra o abuso.

Num cenário como esse, as declarações do procurador Azeredo, do Ministério Público de Minas Gerais, chegam a parecer singelas. Bastou que ele se queixasse do “miserê” que são os R$ 24 mil que pingam líquidos todo mês em sua conta bancária para que uma legião de defensores viesse em seu socorro.

Alguns até disseram que os valores de “indenizações” que mais do que dobram os salários de Excelências como ele são justos e merecidos. Outros mencionaram que eles ganham muito, sim, mas outras corporações têm condições mais vantajosas do que os procuradores.
Ninguém está dizendo, aqui, que R$ 24 mil por mês é muito ou pouco.

O que se discute é que, aqui e ali, sempre tem gente poderosa se valendo de mecanismos “criativos” para, em nome do direito a indenizações definidas por normas que eles mesmos criam, aumentarem os próprios vencimentos com vantagens pagas com o dinheiro do povo. Na Universidade de São Paulo, para citar apenas um exemplo, havia mais de dois mil profissionais recebendo acima do teto legal, que é o salário do governador.

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No caso do Brasil, especialmente do judiciário, há milhares de pessoas que recebem além do teto constitucional, que varia de estado para estado e, no caso federal, é o do salário de um ministro do STF. Qualquer centavo de remuneração direta ou indireta acima desse valor, é ilegal. Ponto final. Mas isso é apenas um detalhe: limite legal, no Brasil, foi feito para quem não tem poder. Quem tem a caneta usa a lei em seu próprio benefício. Infelizmente, é o que parece.

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