Antes mesmo das eleições que, no domingo passado, elegeram o peronista Alberto Fernández para a presidência da Argentina, tendo a ex-presidente Cristina Kirchner como vice, já tinha gente prevendo os desastres que emergirão de uma convivência conflituosa com o Brasil nos próximos anos.
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De acordo com os analistas de plantão, o apoio declarado ao candidato à reeleição Mauricio Macri, derrotado no primeiro turno, pôs o governo de Jair Bolsonaro
em rota de colisão com os vizinhos do sul — que voltarão a ser governados por um partido de esquerda que jamais escondeu sua afinidade com os governos de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff.
Pela análises apressadas, que mais expressam o desejo de quem as fez do que refletem a realidade da Argentina, a política “neoliberal” de Macri teria irritado o eleitorado que, para se vingar, devolveu o poder aos mesmos peronistas que apenas quatro anos atrás sofreram nas urnas uma derrota que muitos julgavam definitiva.
É bem verdade que a inabilidade diplomática de Jair Bolsonaro ajudou a estimular esse tipo de ponto de vista ao abrir uma linha de desgaste desnecessária com um grupo político que já deu tantas demonstrações de falta de escrúpulos políticos que até fica difícil enumerá-las. Mas que, nesse caso específico, não foi o primeiro a cometer equívocos.
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Questões de Estado
O presidente brasileiro não precisava ter sido tão explícito, durante a campanha eleitoral, em sua declaração de apoio a Macri, assim como não ganhou nada ao lamentar o resultado das urnas e ao anunciar que não cumprimentará o vencedor.
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Alberto Fernández
, da mesma forma, não tinha nada que meter o bedelho na decisão da Justiça brasileira e defender a libertação do ex-presidente Lula.
São opiniões que um e outro têm todo o direito de ter, mas que deveriam guardar para si e não se apoiar em suas condições de governantes para repercuti-las. Ao fazer isso, transformam seus palpites em questão de Estado.
Tirando essas rusgas, que tendem a perder temperatura nos próximos dias, mas que volta e meia retornarão às manchetes dos jornais enquanto Bolsonaro e Fernández forem presidentes, a consequência prática das divergências sobre o que realmente interessa — ou seja, a sobre a relação econômica entre os dois países — será pequena, para não dizer nula.
Por maior que seja, historicamente, a capacidade de um dos dois países implicarem e criarem dificuldades um para o outro, o fato é que suas economias estão entrelaçadas demais para que os vizinhos se ponham de costas apenas porque o presidente daqui não gosta do presidente de lá e vice-versa.
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Nem o Brasil nem a Argentina têm interesse em melar o acordo
do Mercosul com a União Europeia só porque seus presidentes não se bicam.
Humor do governante
Um relacionamento civilizado entre nações não deve (ou, pelo menos, não deveria) ser pautado pelas eventuais opções ideológicas dos governantes — nem quando eles divergem, nem quando se afinam.
A Argentina é importante para o Brasil e o Brasil, para a Argentina. Ponto final. Em alguns setores estratégicos
, essa importância chega ao limite da dependência. O caso mais notável é o da indústria automobilística.
O lado brasileiro, a começar pela FCA, que reúne as marcas Fiat e Chrysler
, perde força sem a
boa parceria do Brasil com a Argentina. Do mesmo modo, as montadoras e fabricantes de autopeças da outra banda do Rio da Prata terão dificuldade para sobreviver sem o acesso privilegiado que têm ao mercado do Brasil.
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É muito pouco provável que o grupo argentino Ternium
, principal acionista da mais importante siderúrgica nacional, a Usiminas, concorde com a troca de alfinetadas entre o presidente brasileiro e o eleito argentino e torça para que um dos dois saia vencedor.
Da mesma forma, as empresas brasileiras com investimentos na Argentina , como é o caso da fabricante de carrocerias de ônibus Marcopolo, das indústrias Random e da cervejaria Ambev, também não gostaria que seus investimentos fossem condicionados ao humor do governante da vez.
É claro que todas essas empresas perdem quando as economias dos dois países não se acertam e, nesse caso, os governos podem, sim, atrapalhar. Mas o fato e que, naquilo que diz respeito ao relacionamento econômico puro e simples, é pouco provável que os dois criem problemas.
Mas, até aqui, nada indica que a inabilidade de Bolsonaro e Fernández leve a um rompimento ou algo que o valha.
Bomba relógio
A derrota de Macri, por si só, deveria servir de lição não a Bolsonaro, que dificilmente aprenderá a se manter de boca fechada, mas aos que acreditam que o Brasil só voltará a andar para a frente no dia em que forem desarmadas as bombas relógio que o país viu surgir desde que passou a ser governado por uma lógica populista idêntica à que marcou os governos peronistas da Argentina.
Macri perdeu porque foi incapaz de dar um jeito no problema fiscal crônico que herdou dos peronistas. O que correu o prestígio do presidente derrotado não foram as reformas que ele propôs, mas a falta delas.
Algo parecido pode ocorrer pelo lado brasileiro — com a ressalva de que, bem ou mal e
num ritmo mais lento do que o desejável, o ministro da Economia Paulo Guedes
vai
conseguindo avançar mais do que os liberais argentinos conseguiram nos últimos quatro
anos.
Conseguiu propor e aprovar uma Reforma da Previdência e anunciar outras mudanças nos campos tributário e administrativo que, se são mais acanhadas do que deveriam ser, pelo menos tornam menos aguda a moléstia fiscal que afeta o país.
"Eu sou você amanhã"
Antes de a esquerda brasileira começar a cantar vitória, achando que a Argentina de hoje é o Brasil de amanhã (como o tal “efeito Orloff” de que se falava no final dos anos 1980 e no início dos anos 1990), convém prestar atenção aos motivos que mantiveram no fundo do poço o país vizinho, cujo governo agora retorna para as mãos dos mesmo peronistas que o empurraram para o buraco.
Macri propôs as reformas, mas não teve força política para vê-las aprovadas por um parlamento dominado pela oposição. Se a vitória de Fernández, portanto, pode oferecer uma lição não a Bolsonaro, mas aos que acreditam que na necessidade de equilíbrio fiscal , ela está no campo político.
Ao invés de ficarem batendo boca com a esquerda populista, que sempre consegue vender a ilusão de que tudo o que faz é para o benefício do povo e não para a manutenção do próprio poder, o centro e a direita deveriam seu unir em torno da agenda de reformas e apressá-las antes que as próximas eleições presidenciais devolvam o poder a quem deixou o Brasil no estado em que se encontra.
Se isso não for feito, e já, os populistas brasileiros já podem ir tirando as camisetas vermelhas do armário e se preparando para vesti-las na Avenida Paulista, no dia em que retomarem o poder. O tempo está passando, 2022 esta logo aí.