Uma questão que recorrentemente ganha contornos controversos (fruto mais da falta de maturidade e qualidade do debate público do que de um entendimento científico sobre o assunto) é sobre a sustentabilidade fiscal. Por sustentabilidade fiscal, considero aqui a situação na qual a trajetória das contas públicas não gera uma dívida do governo explosiva (isto é, crescente e que acelera). Isso passa pela ideia (mais técnica) de que a dívida hoje de alguma forma está associada às expectativas dos resultados futuros do governo. Ou seja, se acharmos que ao longo do tempo o governo deve conseguir gerar resultados positivos (superávits) que compensem os momentos nos quais opera com resultados negativos (déficits), não há necessidade de alterarmos nosso comportamento. Contudo, se acreditarmos que isso não é o caso, é possível que reavaliemos a dívida pública (no termo técnico há uma alteração nos fatores de desconto). Vamos entender porque isso é importante no Brasil de 2023.
No enfrentamento da pandemia, parte das investidas macroeconômicas se deu por meio de um forte (e correto) aumento dos gastos públicos e das transferências. Isso não significa que a reposta não tenha custos (tudo tem), mas que os custos são mais do que compensados pelos benefícios. Passada a pior fase da crise econômica, o combate à inflação fez com que diversos bancos centrais (o do Brasil, inclusive, foi um dos primeiros nesse movimento) aumentassem as taxas de juros . Quando os juros aumentam, isso significa que o governo paga mais caro pela dívida que contrai.
Ou seja, a pandemia deixou o mundo mais endividado e com um custo mais alto dessa dívida (além, claro, de todas as outras feridas socioeconômicas e de saúde pública). Chegou o momento de pagar a conta. Quais são as opções que os governos possuem? Primeiro, há sempre a opção de ignorar o problema. Temos, no mínimo, um século de evidências na América Latina sobre o que acontece quando deixamos as contas públicas saírem do controle. Então, se o governo quiser fazer algo, ele tem algumas opções: contrair mais dívida para pagar os débitos passados, aumentar impostos, cortar gastos, vender ou conceder ativos, imprimir moeda ou uma combinação de todas as alternativas anteriores.
Imaginemos uma situação na qual o governo contrai mais dívida para pagar o que já deve. Quando isso ocorre momentaneamente (e com taxas de juros baixas), o retorno econômico-social pode ser maior do que os seus custos. Ou seja, aumento de dívida e déficit público não implicam, necessariamente, em algo ruim para a economia . Podem, sim, ser resultados de boas escolhas de política econômica. Mas isso tampouco significa que seja sempre o caso. Tudo depende da situação.
No “dia depois de amanhã” o problema pode não só persistir, mas também se agravar. Então o governo terá que fazer o quê? Contrair mais dívida? Lembremos que para ele ter êxito, temos que ter agentes interessados em emprestar recursos. Mas isso ocorrerá justamente quando eles estão reavaliando a atratividade da dívida pública. Um governo mais endividado pode ser considerado mais arriscado. Em que pese algumas pessoas realmente acreditarem que governos que emitem dívida em sua própria moeda não apresentem risco de calote, já que podem sempre recorrer à impressão da moeda doméstica, os detentores dos títulos podem não estar interessados em “pagar para ver” se isso é verdade e esperarem passivamente enquanto as contas públicas se descontrolam.
Lembremos que na economia as restrições sempre operam (e imperam). Então, se o gasto do governo e a arrecadação (assim como a poupança agregada) dependem, necessariamente, da renda que é gerada ao longo do tempo, já há uma clara impossibilidade matemática: como o governo pode gastar sempre mais do que arrecada e contrair mais dívida se a produção não conseguir acompanhar esse ritmo?
A pressão do descontrole das contas públicas levaria a economia a encontrar uma forma pouco interessante de se reequilibrar: crescendo menos e com mais inflação.
Em "Austerity: When It Works and When It Doesn't" (“Austeridade: Quando funciona e quando não”, em tradução livre), Alberto Alesina, Carlo Favero e Francesco Giavazzi apresentam evidências empíricas de que quando a escolha de ajuste fiscal é feita com uma maior proporção do programa com base em impostos, os custos associados à redução do PIB são maiores do que quando ocorrem com uma proporção maior de redução de gastos. Os autores ainda nos lembram que quando a consolidação ocorre ao mesmo tempo que parceiros comerciais também a fazem, os efeitos podem ser ainda mais negativos.
Pode parecer então que é óbvio que o ajuste deva ocorrer pelos gastos. Cuidado com as simplificações.
A intensidade do impacto na atividade econômica proveniente das mudanças nos gastos (o “multiplicador fiscal”) é influenciada pelo nível desigualdade. Em "Fiscal multipliers in the 21st century" ("Multiplicadores fiscais no século 21", em tradução livre"), Pedro Brinca, Hans Holterd, Per Krusell e Laurence Malafry encontram evidências de que o impacto de gastos públicos será mais forte quanto maior for a desigualdade no país. Os autores concluíram que quanto maior a fração da população com restrições à crédito (que terão, no economês, uma maior propensão marginal a consumir, já que não conseguem suavizar o consumo ao longo do tempo com empréstimos), maior será o impacto dos gastos do governo. Esse efeito cresce com baixa taxa de poupança e dívida alta, exatamente o cenário que observamos por aqui. Portanto, temos que ter cuidado também quando pensarmos em ajustes por meio dos gastos do governo. Aliás, historicamente, as escolhas de ajustes pelas quais optamos no Brasil são sempre as de pior qualidade: em cima dos mais vulneráveis, que criam má-alocação de recursos, protegem grupos de interesse, de maneira regressiva e que não resolvem o problema de longo prazo.
Assim, é fundamental procurarmos a agenda da responsabilidade fiscal alicerçada na proteção daqueles que mais sofreram com a pandemia e/ou que mais sofrem com a falta de oportunidades na economia brasileira. O ajuste deve vir com redução de privilégios, racionalização de atividades estatais e diminuição daqueles subsídios que distorcem a atividade econômica, concentram renda e reforçam a alta desigualdade no país. Não podemos colocar o peso do ajuste em quem é mais vulnerável. Contas públicas descontroladas e dívida insustentável tampouco é alternativa viável. A sustentabilidade fiscal é importante, sim. A maneira como é obtida, mais ainda.