Antes de entrar nos temas delicados que serão abordados neste texto, uma advertência: a Amazônia é fundamental para o equilíbrio ambiental do planeta e sua preservação interessa, sim, a todos os países do mundo. Sendo assim, todo e qualquer esforço feito pelo governo brasileiro (qualquer governo, não apenas o do presidente Jair Bolsonaro) para assegurar a exploração racional e a preservação da cobertura natural de floresta será positiva e contará pontos a favor do país no seu relacionamento com os povos civilizados. Entendido? Está claro?
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Se estiver de acordo com isso, sigamos em frente: o debate ideológico alcançou no Brasil um grau de insanidade tão extremo que não faltam por aqui pessoas que comemoram qualquer manifestação vinda do exterior contra a política ambiental do governo, por mais interessada que ela seja. Com pouco mais de seis meses no Planalto, Bolsonaro tem sido mostrado como alguém capaz de promover uma devastação ambiental como ainda não foi vista desde que Tomé de Souza desembarcou na Bahia, em 1549. A reportagem capa da última edição da revista inglesa The Economist ajudou a aumentar esse coro.
Com dados já conhecidos e tomados como verdadeiros sem uma avaliação mais profunda do cenário, a reportagem descreve o velório da Amazônia . Vê Bolsonaro como uma ameaça à floresta e propõe como solução o boicote mundial aos produtos agrícolas brasileiros. Entre eles, claro, a soja. Bastou a "The Economist" dizer o que disse para que os aplausos começassem. Qualquer crítica feita a Bolsonaro, à ministra da Agricultura Tereza Cristina e ao ministro do meio ambiente Ricardo Salles é aplaudida de pé, sem se prestar atenção de onde elas partem nem aos interesses que elas servem.
Trump e os chineses
Antes de prosseguir, mais um aviso: o foco da argumentação que se seguirá é 100% comercial. Nenhuma opinião neste texto expressa simpatia ou rejeição antecipada a qualquer personagem mencionado, certo?
Desculpe a demora para entrar no assunto: o terreno é espinhoso e todo cuidado é pouco para manter o debate livre das paixões que as causas ambientais passaram a despertar no Brasil, de um lado e de outro. Tudo o que se pede é para que não se tome o partido dos ambientalistas nem do governo antes do fim da leitura. Vamos, para ganhar tempo, apresentemos os três pontos que realmente interessam:
Ponto 1: Depois que o presidente dos Estados Unidos Donald Trump impôs sobretaxas à entrada de produtos chineses nos Estados Unidos, o governo de Beijing contra-atacou com as armas que tinha. E impôs, ele também, uma sobretaxa de 25% sobre o produto que mais compra dos Estados Unidos — a soja.
Com isso, as exportações americanas da commoditie despencaram, o que, naturalmente não foi recebido com simpatia pelos produtores rurais americanos — que integram a ala mais ruidosa da base de apoio de Trump. Tanto assim que o secretário da Agriculta Sonny Perdue resolveu se mexer ostensivamente para resolver a situação.
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Perdue foi governador da Georgia, um dos estados mais rurais dos Estados Unidos. Suas ideias sobre o campo fazem as da ministra Tereza Cristina, que os críticos chamam de “Musa do Agrotóxico”, se parecerem com as de uma líder de ONG ambientalista. Mas essa é uma outra discussão. O que interessa aqui é que Perdue passou a pressionar o governo a resolver as pendências com a China. E, como é típico da atual administração americana, a solução foi tentar apagar o fogo com gasolina.
Um longo caminho a percorrer
Esta semana, Trump anunciou uma nova sobretaxa, desta vez de 10%, contra produtos chineses que ainda não tinha sido atingidos pelas medidas anteriores. A decisão foi justificada com um argumento singelo. O presidente disse que a China havia se comprometido a “comprar produtos agrícolas em grandes quantidades, mas não o fez”. Portanto, merece ser punida!
Hello! Viu o que fez o presidente americano? Nada mais, nada menos do que tentar obrigar a China a comprar soja dos Estados Unidos. A estratégia da pressão tem tido algum sucesso. Tanto assim que Perdue comemorou dias atrás o aumento das exportações americanas de soja no mês de julho e disse que espera aumentar as vendas da commoditie para a China em 20 milhões de toneladas nos próximos meses. Para ele, China “ainda tem um longo caminho a percorrer” para normalizar as relações comerciais.
Ficou claro o que foi dito acima, certo? Podemos ir em frente? Então, vamos.
Um mercado internacionalizado
Ponto 2: Esqueça o que leu até aqui. Mudemos de cenário: o Brasil, que já é o maior exportador de soja do mundo, caminha para tomar dos Estados Unidos a posição de maior produtor do grão. A produção da safra de 2019 pode chegar a 126 milhões de toneladas, ante cerca de 116 milhões de toneladas, conforme a estimativa da consultoria DatAgro.
As exportações brasileiras do grão têm girado em torno das 70 milhões de toneladas nos últimos anos. O principal destino é a mesma China para quem os Estados Unidos querem aumentar as exportações. O que não é mandado para o exterior fica no mercado interno e ajuda a alimentar o gado e as aves que fazem do país o maior produtor de proteína animal do mundo — e isso também tem peso na pauta de exportações.
É interessante observar o seguinte: o aumento previsto de mais de 8% da produção (em contas arredondadas) foi obtido com uma expansão de menos de 2% da área plantada. Isso mostra, basicamente, que o agronegócio não precisa devastar para se expandir. Além disso, essa é apenas mais uma demonstração da produtividade do único ramo da economia brasileira que não foi abalroado pela recessão. A produção, como tem sido comum nos últimos anos, aumenta numa proporção superior à expansão da área plantada.
A questão é: por que o agronegócio não foi atingido pela tragédia econômica que se abateu sobre o país? Ora, ora, ora, essa é fácil: o campo só não foi atingido por se tratar do setor mais internacionalizado da economia. Ele não depende da situação interna do país para expandir seu mercado.
Desde que o crédito rural do Banco do Brasil foi substituído pelo dinheiro das grandes tradings internacionais para o financiamento da safra, os grandes produtores deixaram de depender de Brasília até para financiar sua lavoura.
Não é segredo para ninguém, portanto, que o campo depende mais das decisões que são tomadas na Bolsa de Hong Kong do que das medidas tomadas na Esplanada dos Ministérios. Da mesma forma, é cada vez mais claro que, se não fosse a eficiência do agronetócio, a situação do país, que já é péssima, estaria muito pior.
Se estiver claro até aqui, podemos passar para o último ponto. Vamos lá?
O arroz no supermercado
Ponto 3: Nos últimos meses — que, talvez por uma mera coincidência, coincidem com a intensificação da disputa comercial que se estabeleceu entre os Estados Unidos e a China — houve um aumento no tom das críticas feitas ao agronegócio brasileiro.
A decisão de governo de quebrar a patente de defensivos agrícolas e transformá-los em produtos genéricos, por exemplo, foi criticada como uma espécie de “liberou geral” dos agrotóxicos — quando, na verdade, não passou de uma medida destinada a reduzir o custo da safra.
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O tema é polêmico e, portanto, deve ser tratado com cuidado. Uma discussão como essa tem que ser conduzida tecnicamente, com a avaliação criteriosa e pouco apaixonada da posição de cada lado. Mas isso não aconteceu, como não tem acontecido em relação a qualquer tema que envolva o campo.
Nesse cenário, todo e qualquer movimento em relação ao agronegócio passou a ser criticado como um grave atentado ao meio ambiente por gente que parece acreditar que o arroz brota em sacos plásticos nas prateleiras do supermercado e o leite já vem ao mundo dentro de embalagens longa-vida.
Para os críticos mais apressados, que nunca se deram ao trabalho de sujar os tênis descolados que calçam com a poeira vermelha do cerrado, qualquer ONG que tem os olhos voltados para o meio ambiente sabe mais sobre a situação ambiental do país do que os técnicos da Embrapa — que sempre foram críticos à metodologia utilizada pelo INPE para medir o avanço do desmatamento na Amazônia. Esse tema, por sinal, foi discutido neste espaço semanas atrás .
Inocentes úteis
Atenção, senhores! Não vamos entrar aqui na discussão sobre quem está certo e quem está errado no debate em torno do desmatamento. O importante é recordar o que foi dito no primeiro parágrafo: ninguém aqui está dizendo que as árvores da maior floresta tropical do mundo podem ser derrubadas a torto e a direito pelas motosserras dos devastadores. O único pedido que se faz é para que se observe exatamente o jogo que está sendo jogado — e ele é muito mais pesado do que pode parecer.
A reportagem da "The Economist" precisa ser lida com cuidado e ter cada um de seus pontos discutidos. Quanto mais técnica e menos apaixonada for empregada nesse esforço, melhor. Seja como for, ao se perfilar automaticamente contra o agronegócio e tomar como verdadeira qualquer crítica que se faça ao Brasil nesse campo, os críticos de Bolsonaro estão facilitando a vida de Trump. O que eles dizem ajudam muito mais à economia dos Estados Unidos do que qualquer declaração de alinhamento automático feita pelo deputado Eduardo Bolsonaro ou pelo chanceler Ernesto Araújo.
Não fazem isso conscientemente, agem como inocentes úteis — o que, convenhamos, é uma posição muito mais vexatória. Ao agir contra o agronegócio brasileiro, facilitam a vida do secretário Sonny Perdue e tornam o mercado internacional de commdities um ambiente cada vez mais favorável aos agricultores americanos. Os produtores rurais da Georgia devem estar neste momento morrendo de rir de seus concorrentes do Mato Grosso.