Aplaudido como a prova da possibilidade de convivência civilizada entre situação e oposição, o acordo que levou o Congresso Nacional a autorizar o governo a contrair empréstimos para pagar despesas correntes da administração pública é, na verdade, a mais escancarada demonstração da péssima composição dos gastos públicos no Brasil. Fechado na última terça-feira (11), o entendimento revela que o maior problema das despesas do governo não é o volume exagerado, mas o destino dos gastos.
O resultado final da votação, que incluiu as duas casas do Congresso, foi acachapante: 450 a zero. Quem estava presente atendeu ao pedido do governo e aprovou a autorização. Foi uma festa. Ao ser anunciado o acordo, a oposição bateu no peito para comemorar. Disse que a autorização de endividamento só foi concedida porque o governo se comprometeu a liberar dinheiro para projetos e serviços que estavam à míngua devido ao contingenciamento das verbas.
Foi reservado R$ 1 bilhão para o programa Minha Casa Minha Vida. Outro R$ 1 bilhão irá para as universidades federais, R$ 550 milhões para as obras de transposição do Rio São Francisco e R$ 330 milhões para o pagamento das bolsas de mestrado e doutorado do CNPq. É, de fato, muito dinheiro: R$ 2,88 bilhões. Isso é suficiente para permitir que esses projetos e programadas respirem aliviados até o final deste ano. Ótimo!
O problema é essa soma fantática representa pouco mais de 1% (ou 1,15%, para ser exato) dos R$ 249,9 bilhões que o Congresso autorizou ao governo a emitir para cobrir suas contas sem incorrer em crime de responsabilidade. O restante, ou seja, pouco mais de R$ 247 bilhões, serão destinados para o pagamento de salários e aposentadorias, para a cobertura dos juros dos empréstimos passados e para manter a máquina pública funcionando no limite inferior de sua capacidade técnica.
O fato, por qualquer lado que se olhe, é estarrecedor: é custeio demais para investimento de menos. Esses R$ 249,9 bilhões que o governo poderá emitir em títulos até dezembro, veja só, representam praticamente 25% do R$ 1 trilhão que se pretendia inicialmente economizar em dez logos anos com a reforma da Previdência . Pretendia, mas não conseguirá: na hora de fazer os cortes, os nobres parlamentares batem o pé e o resultado mais recente dessa “resistência” foi o relatório apresentado pelo deputado Samuel Moreira (PSDB) na última quinta-feira (13) — que manteve nas costas da Previdência despesas que o País já não da mais conta de pagar. É como diz o lema dos estroinas, citado nos versos do samba Firme e Forte, de Efson e Nei Lopes, que fez sucesso nos anos 1980 na voz da saudosa Beth Carvalho: “Se o Brás é tesoureiro, a gente acerta no final”.
Regra de ouro
Nem se está pretendendo, aqui, entrar no mérito do retrocesso conceitual embutido na quebra da regra de ouro , pela qual o Executivo não pode se endividar para cobrir despesas com o custeio da máquina pública. Por mais grave que seja, essa quebra é apenas o sintoma. A doença em si é a própria estrutura dos gastos oficiais, onde as despesas com a manutenção da máquina administrativa são muito mais vultosas do que os investimentos em políticas públicas voltadas para o cidadão. Essa é a verdade.
Quem acompanhou as negociações em torno da reforma da Previdência e ouviu os argumentos canhestros que os defensores de privilégios utilizam para tentar barrar as mudanças sugeridas nas aposentadorias da elite do serviço público percebe o quanto é difícil aprovar no Congresso uma proposta de redução de gastos — por mais vital que ela seja para a ativação da economia e para a própria sobrevivência do Estado brasileiro. Para cortar despesas, a briga é feia. Na outra ponta, ou seja, na hora de aprovar gastos, a polêmica some do plenário: todos, situação e oposição, sempre procuram uma maneira de garantir que não falte dinheiro. Ainda que o dinheiro não exista e tenha que ser buscado no mercado.
Não existe certeza de que os novos títulos lançados pelo governo alcançarão o valor de R$ 249,9 bilhões autorizado pelo Congresso. Esse é o teto da farra. E ainda que esse teto seja alcançado, essa dinheirama representará uma gota no estoque da Dívida Pública Mobiliária Federal (ou seja, a soma dos títulos lançados no mercado interno), que hoje é superior a R$ 3,7 trilhões de reais. O problema é que a porteira foi aberta. E por onde passa um boi, passa uma boiada. Se o governo pedir de novo, Suas Excelências autorizarão mais uma vez.
Velho Chico
Do jeito que a economia está evoluindo — ou melhor, no ritmo deplorável de crescimento que será alcançado em 2019 — a arrecadação continuará comprimida e, no ano que vem, é muito provável que o Ministério da Economia , com ou sem reforma da Previdência, volte a pedir para se endividar para conseguir pagar as despesas do dia a dia. Não por incompetência. Mas porque, no Brasil, as despesas sobem sem que ninguém possa fazer nada para evitar. Aconteça o que acontecer, os servidores públicos têm aumentos automáticos, o Judiciário se premia com reajustes generosos e vantagens paralelas, o Legislativo acha natural distribuir benefícios a torto e a direito. Ninguém quer saber de onde sairá o dinheiro e quem paga a conta: o importante é gastar.
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Mais do que uma autorização para a contração de empréstimo, o que o Congresso fez, portanto, foi jogar luz sobre a fragilidade das contas públicas do Brasil: quase tudo o que se arrecada é gasto com o custeio da máquina — e o que sobra para os investimentos é muito pouco, quase nada. E pior: o que vai para os investimentos nem sempre é destinado a projetos estruturantes, capazes de gerar valor para a sociedade.
As obras de transposição do São Francisco, contempladas no acordo que a oposição celebrou com a situação, são um exemplo disso. Anunciadas como a redenção da caatinga, elas correm o risco de não dar conta de resolver o problema que justificam sua execução e ainda criar confusão onde antes não existia. Não conseguirão abastecer os novos beneficiados e ainda podem matar de sede os que antes tinham água — além de comprometer seriamente a capacidade de geração de eletricidade das usinas de Sobradinho, Paulo Afonso e Xingó. Mesmo assim, as obras seguem impávidas, sem que ninguém tenha avaliado seus efeitos sobre o ecossistema e sobre a economia da região a jusante da transposição.
A rigor, o problema das obras do São Francisco é o mesmo das contas públicas brasileiras: todo mundo olha para o destino e para a intenção, mas não se preocupa com a origem — nem da água, nem do dinheiro. Assim como Velho Chico não dá conta de resolver todo o problema de falta d’água no Nordeste, o dinheiro que o cidadão consegue recolher em impostos não é suficiente para tudo o que políticos prometem. Esse é o xis da questão: recentemente, o País se dividiu em torno de manifestações que (sem considerar as motivações políticas de cada grupo), de um lado, pediam mais dinheiro para a educação enquanto, do outro, apoiavam a reforma da Previdência. A briga, na verdade, deveria ser por um problema que afeta os dois lados.
Favores à população
No dia em que a população for às ruas pedir o fim dos privilégios salariais de juízes, promotores, parlamentares e servidores do Judiciário e do Legislativo e de repartições bem aquinhoadas como o TCU (Tribunal de Contas da União) e a Receita Federal; no dia em que os assalariados perceberem a injustiça que é pagar impostos cada vez mais elevados para bancar os aumentos automáticos de salários para os servidores públicos; no dia em que o Brasil tomar consciência de que o dinheiro não é do governo, mas do povo, talvez o País comece a entrar nos eixos e a população se convença de que a verdadeira função do Estado é a prestação de serviços públicos de qualidade. Serviços que, no Brasil, são vistos como favores prestados à população e não como obrigação do Estado.
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Esse problema é antigo. Desde antes da chegada da família real portuguesa, em 1808, o Brasil é vítima da inversão da lógica que, nos países mais evoluídos, pauta a relação entre Estado e sociedade. Nesses países, o Estado existe para servir à sociedade. No Brasil, acontece o contrário: é a população que precisa se esfalfar para garantir a segurança de quem está dentro da máquina — tanto funcionários que lucram quanto os fornecedores que se beneficiam de sua proximidade com o poder. No final das contas, o que se viu depois de tanta celeuma em torno da Previdência foi que a situação fiscal está longe de se resolver. E que, nos próximos anos, voltaremos a assistir as cenas lamentáveis de deputados que esbravejam dizendo que defendem os mais pobres quando tudo o que fazem é garantir a boa vida das categorias que representam.
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