O Benefício de Prestação Continuada (BPC) , que auxilia pessoas com deficiência e idosos de baixa renda, tem se tornado alvo das reformas fiscais do governo, com o foco em conter os pagamentos indevidos que já somam R$ 14,5 bilhões anuais. Apesar das intenções do governo em reformar o programa, o Congresso Nacional tem dificultado a implementação de algumas medidas de controle. A informação é do jornal O GLOBO.
O gasto do governo com o BPC em 2025 é estimado em R$ 118,3 bilhões, e os pagamentos indevidos representam cerca de 12% deste valor, segundo levantamento feito por Leonardo Rolim, ex-presidente do INSS e especialista em Previdência e Orçamento. O BPC oferece um benefício equivalente a um salário mínimo (atualmente de R$ 1.518) para aqueles que atendem aos critérios de renda e condições de deficiência.
De acordo com o estudo de Rolim, a concessão de novos benefícios tem registrado um aumento anômalo desde 2022, que não pode ser explicado apenas pelo envelhecimento da população ou pela quantidade de pessoas com deficiência.
Em sua análise, Rolim aponta que o número de beneficiários saltou de 4,71 milhões em junho de 2021 para 6,3 milhões em outubro de 2024, representando um aumento de 33,4%. Se o crescimento tivesse mantido os parâmetros de antes da pandemia, cerca de 1,02 milhão de benefícios a menos teriam sido concedidos, o que resultaria em uma economia de R$ 14,5 bilhões em 2024.
"Apesar de não ter ocorrido nenhuma mudança significativa nas regras de acesso ao BPC, verificou-se um elevado aumento no número de requerimentos e no número de benefícios emitidos, especialmente no benefício para pessoas com deficiência. Trata-se de movimento iniciado ainda no governo anterior, em 2022", disse Rolim.
O governo federal tinha como objetivo reduzir esse crescimento no pacote fiscal enviado ao Congresso em dezembro, mas várias das propostas foram modificadas ou rejeitadas. Em particular, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva vetou uma parte da proposta, após negociações com o Senado.
O problema das decisões judiciais
Uma das questões apontadas por Rolim para o aumento das despesas com o BPC é a quantidade de processos judiciais. De acordo com dados do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), um terço dos gastos com o BPC resultam de ordens judiciais. Ou seja, para cada três benefícios, um é concedido por decisão judicial, após o INSS recusar o benefício por considerar que o requerente não atende aos critérios estabelecidos.
"O que foi proposto pelo governo no projeto de lei atacaria com muita força o aumento indevido e injustificado das despesas do BPC, considerando o perfil da população. O projeto já foi muito desidratado no Congresso. O veto (de Lula) foi uma pena", afirmou Rolim, explicando que a proposta de distinguir as deficiências "moderada" e "grave" para restringir o acesso ao benefício poderia ter ajudado a reduzir esses custos.
De acordo com o especialista, a quantidade de recursos judiciais está diretamente ligada a uma interpretação mais flexível dos critérios de concessão, como a definição de deficiência e a avaliação da renda familiar. Além disso, a concessão de BPC a pessoas com deficiência leve tem sido uma das principais causas do aumento das despesas, pois, nesses casos, o indivíduo muitas vezes tem capacidade de trabalhar e não deveria ser considerado para o benefício.
Medidas de controle no BPC
Em relação ao controle de gastos, o governo também buscou implementar medidas como revisões cadastrais periódicas, o uso de biometria e a exigência de inscrição no Cadastro Único. Contudo, Rolim considera que essas ações, apesar de positivas, têm alcance limitado e não são suficientes para lidar com o volume atual de concessões e processos judiciais.
Impacto das mudanças no Congresso
No pacote de medidas enviado pelo governo, a proposta de reverter uma alteração legislativa feita durante a pandemia — que permitiu o pagamento do BPC a mais de um integrante da mesma família — foi retirada por decisão do Congresso, com apoio do PT. Esta medida, que visava restringir o pagamento de múltiplos benefícios dentro de uma mesma unidade familiar, foi um dos pontos mais debatidos na Câmara.
Além disso, a mudança no conceito de núcleo familiar, que visava limitar a concessão do benefício apenas a famílias com renda per capita dentro de limites estabelecidos, também foi rejeitada. A ideia era alinhar os critérios do BPC com os do Bolsa Família, mas essa proposta não obteve apoio no Congresso.
"A estimativa de impacto fiscal com mudanças no BPC nos primeiros anos caiu de R$ 2 bilhões para R$ 1 bilhão, pois a proposta inicial de vedação de dois membros da família receberem apenas um benefício era a maior economia e acabou caindo no Congresso", explica Arnaldo Lima, da Polo Capital, ao GLOBO, destacando que, mesmo com as modificações, o BPC continuará pressionando as finanças públicas enquanto estiver vinculado ao salário mínimo.
Pente-fino e críticas à condução das mudanças
O ministro do Desenvolvimento Social, Wellington Dias, defendeu as mudanças no BPC, afirmando que elas ajudarão a reduzir fraudes e garantir que o benefício chegue a quem realmente tem direito, sem a necessidade de recorrer ao Judiciário. A lei sancionada prevê que a concessão do benefício esteja sujeita a avaliações mais rigorosas, incluindo biometria e o cruzamento de dados sobre a renda dos beneficiários.
"A mudança aprovada ajuda a fechar duas portas. Uma, contra fraudes diretas por usuários, com sistema de biometria, atualização do cadastro a cada dois anos e cruzamento de dados sobre renda. A outra dará maior transparência no conceito de deficiência, evitando que o Judiciário se torne uma porta de entrada, onde pessoas que não preenchem requisitos da lei ficassem recebendo anos e anos até que se decida que não era devido", afirmou o ministro.
A nova lei também estabeleceu que a revisão do cadastro será feita a cada dois anos e incluiu a exigência de que, caso o beneficiário não se recadastre, o benefício será suspenso, caso fique comprovado que ele foi notificado para realizar o processo. Além disso, o compartilhamento de informações será facilitado e, para a concessão do benefício, será obrigatório o registro do código da Classificação Internacional de Doenças (CID).
Críticas sobre o modelo atual do BPC
Zélia Pierdoná, procuradora da República e professora da Universidade Mackenzie, criticou ao GLOBO o modelo atual do BPC, que considera ineficiente e insustentável fiscalmente. Ela argumenta que o sistema de concessão do benefício foi distorcido por decisões populistas do Legislativo e do Judiciário, permitindo que pessoas com deficiência leve, que têm condições de trabalhar, recebam o benefício. Além disso, a definição de renda familiar no Brasil é mais flexível, permitindo que mais pessoas se qualifiquem para o BPC do que em outros países.
"O desenho atual do BPC só existe no Brasil e é resultado do populismo do Legislativo e do Judiciário", critica Pierdoná.
Sugestões para ajustes no valor do benefício
Marcos Mendes, economista do Insper, propõe mudanças no valor do BPC, especialmente no que diz respeito ao benefício pago aos idosos. Ele sugere que o valor do BPC para os idosos seja ajustado para refletir de maneira mais justa a diferença entre aqueles que contribuíram ao longo da vida para a Previdência Social e os que nunca o fizeram.
"O BPC constitui uma transferência de renda não associada à reposição de renda do trabalho, constituindo benefício de valor muito elevado quando comparado com outras transferências de renda, como o Bolsa Família", afirmou Mendes, defendendo uma reformulação do valor do benefício para que ele seja mais equilibrado.
Durante a reforma da Previdência de 2019, o governo de Jair Bolsonaro havia proposto uma redução do valor do BPC para 70% do salário mínimo, mas essa medida foi barrada pelo Congresso.