Ainda que os textos, depois de concluídas suas tramitações, se mostrem mil vezes melhores do que se imagina que saiam é certo que, por si só, não terão força para fazer o país andar depois de tantos anos de condução estúpida da economia.
A recessão brasileira não é consequência apenas dos desarranjos fiscais que serão enfrentados mal e porcamente por essas reformas. Ela é resultado, também, de um ambiente abertamente hostil aos negócios e da falta de vocação das autoridades para resolver problemas de fácil solução.
Uma prova cabal da inabilidade do Poder Público brasileiro é a que o país está em curso na Região Norte. Trata-se da linha de transmissão que, no dia em que ficar pronta (se é que um dia ficará) livrará o estado de Roraima da dependência da eletricidade venezuelana.
O projeto é grande, importante e ninguém (a não ser o denodado Ministério Público Federal, conforme se verá mais adiante) põe em dúvida sua necessidade. Mas a condução do processo vem sendo marcada por tanta lambança que conseguiu desagradar a todos os envolvidos.
A obra, licitada em 2011, deveria ficar pronta em 2014 e sempre que alguém fala desse atraso tenta atribuir a culpa aos indígenas Waimiri Atroari
, que não aceitariam a passagem da linha por suas terras. Um olhar sensato sobre a questão, no entanto, mostra que, de todos os envolvidos na pendenga, esse povo que vive no norte do Amazonas e no sul de Roraima, é o menor culpado pela confusão.
Pelo projeto, a linha de transmissão terá uma extensão de 740 quilômetros, com três subestações ao longo do trajeto. Estão previstas cerca de 1500 torres de transmissão, 250 delas nos 125 quilômetros que cortam as terras dos Waimiri Atroari.
A reserva é oficial desde 1987 e seus líderes têm toda razão do mundo para desconfiar de qualquer decisão que diga respeito à presença de elementos estranhos em seus domínios. A nação quase foi varrida da face da terra nos anos 1970, dizimada por doenças e pela violência que acompanhou a implantação da BR-174, que liga Manaus a Boa Vista, e, mais tarde, da hidrelétrica de Balbina.
As obras foram decididas durante o governo militar e, como tudo que foi feito naquela época, decidas sem que se levasse em conta os interesses de quem quer que fosse.
Vítimas de uma selvageria sem tamanho, os índios se viram reduzidos, de um número superior a três mil indivíduos, para 374 sobreviventes. Nos anos 1980, começaram a ser discutidos os limites territoriais de uma reserva para os Waimiri Atroari.
Depois de ver parte das terras que lhes caberiam coberta pelo lago de Balbina e outra parte dominada por grileiros, o povo teve reconhecido seu direito sobre quase 2,6 milhões de hectares.
Ninguém quer discutir aqui se 2,6 milhões de hectares são muito ou pouco para os cerca de dois mil brasileiros que vivem lá hoje em dia. A questão que deveria orientar qualquer discussão em torno desse tema é muito mais elementar: depois que o direito desses indígenas foi reconhecido, o mínimo a ser feito antes de qualquer intervenção que se queira fazer nelas é consulta-los a respeito.
A questão é que, no momento em que o governo Dilma Rousseff decidiu licitar a linha de transmissão, escolheu um caminho tão truculento quanto o dos governos militares. E o edital foi para as ruas sem que os Waimiri Atroari sequer fossem consultados a respeito.
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Eletricidade bolivariana Se a consulta tivesse sido feita no momento certo, o povo de Roraima já estaria livre da energia bolivariana
Se a consulta tivesse sido feita no momento certo (ou seja, antes do lançamento do edital), com a devida oferta aos Waimiri Atroari de compensações e garantias para a implantação da linha de transmissão à margem do traçado da BR-174, o problema teria sido resolvido e o povo de Roraima já estaria livre da dependência da eletricidade bolivariana — que, como tudo que está sob responsabilidade do ditador Nicolas Maduro é ruim, cara e insuficiente.
Conversar antes teria sido uma medida elementar de bom senso. Mas esperar bom senso de um governo como o de Dilma Rousseff, do PT, convenhamos, seria pedir mais do que ele era capaz de entregar.
Mesmo estando nas mãos do único partido que se considera capaz de falar em nome “dos povos da floresta”, o governo abriu o edital à revelia dos índios — e o leilão 004/2011 foi vencido por um consórcio que reúne a estatal Eletronorte e a Alupar, que é a maior empresa de transmissão de energia de capital nacional.
Antes do processo ter sido aberto (e esse ponto precisa ficar bem claro) o governo tinha a obrigação legal de chamar os índios para conversar. Seria o mínimo a esperar num país civilizado.
Os Waimiri Atroari deveriam ter sido ouvidos e seus argumentos considerados não porque, como indígenas que são, merecem algum tipo de proteção ou privilégio. Eles teriam que ser ouvidos porque, como brasileiros que são, devem ter seus interesses levados em conta em qualquer decisão que lhes diga respeito.
A bem da verdade, em nenhum momento desse processe os indígenas se colocaram terminantemente contrários ao linhão. Tudo o que eles sempre pediram foram compensações legítimas e condições seguras para a passagem da linha de transmissão por suas terras.
Apagar o fogo com gasolina
Como nenhuma garantia foi dada, os indígenas recorreram à Justiça (o que não teriam feito se tivessem seguros quanto à obra). E o projeto, que de fato não seguiu os trâmites legais antes que o leilão fosse feito, foi embargado. Simples assim.
De quem é a culpa? Do governo que atropelou a lei ou dos indígenas que foram em busca de seus direitos?
Antes que essa duvida fosse esclarecida, chegou o governo Jair Bolsonaro. Ao invés de buscar uma solução sensata, que destravasse o problema, quis apagar o fogo jogando gasolina na chama.
Não deixa de ser interessante: Bolsonaro e seus apoiadores consideram justo e legítimo que produtores rurais recebam a bala qualquer um que tente invadir suas propriedades. Também não é isso que se pretende discutir aqui e, sim, a coerência do discurso presidencial.
No que diz respeito aos Waimiri Atroari, o governo acha justo e legítimo negar aos donos não o direito de pegar em armas para defender suas terras, mas única e tão somente de discutir as condições de uso das terras por terceiros.
E, assim como Dilma quis por o projeto para andar com um empurrão da mão esquerda, Bolsonaro tentou destravar o processo com a força da mão direita. Logo no início de sua administração, baixou uma medida que considerou a linha de transmissão de interesse nacional e autorizou sua construção sem qualquer consulta aos indígenas.
Foi o que bastou para dar ao Ministério Público (sempre o Ministério Público!) a chance de fazer o que mais sabe: criar dificuldades. É incrível como a história se repete. Os senhores procuradores têm nas mãos instrumentos que lhes permitiriam buscar soluções sensatas para que um negócio como esse se realizasse dentro dos marcos legais.
Mas sempre que têm a chance de decidir sobre uma questão de natureza econômica, parecem fazer questão de piorar o que está ruim. No caso específico do linhão de Roraima, as palavras da autoridade encarregada pelo caso merecem figurar, ao lado do vento estocado de Dilma Rousseff, na lista das grandes pérolas já ditas supostamente em defesa do uso da energia
renovável.
O procurador do caso, o doutor Fernando Soave Merloto, determinou que os Waimiri Atroari seja ouvidos em relação ao caso. Nisso, ele está coberto de razão e o Tribunal Federal da 1ª Região até já se pronunciou a respeito no mês passado. Só que ele, também sem ouvir os indígenas, disse a sites que se dedicam à cobertura da Região Amazônica que discorda da justificativa de que uma obra “que vai levar dois ou três anos para ser concluída” possa ser considerada de emergência.
A solução, segundo ele, seria “trazer um projeto de energia solar, que é mais rápido. O potencial de energia solar em Roraima é muito alto”. É nesse ponto que a opinião do senhor procurador se iguala ao vento estocado da ex-presidente.
As areias do Saara
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Regras baixadas pelo governo Dilma abortaram os projetos de energia alternativa abortou dezenas de projetos de energia limpa e renovável
A obra, se levar dois ou três anos, ficará pronta em menos tempo e causará um impacto ambiental inferior ao do projeto de energia solar imaginado pelo procurador. Como se sabe, todos os grandes projetos de geração de energia alternativa (solar, eólica ou por meio das Pequenas Centrais Hidrelétricas, as PCH) foram interrompidos no exato momento em que Dilma Rousseff tornou a implantação desses projetos economicamente inviáveis.
A pretexto de tentar reduzir na marra o preço das tarifas de energia, a presidente resolveu, ainda em seu primeiro mandato, pagar pela energia gerada pelas fontes alternativas (que custa mais caro no período de implantação) o mesmo valor pago pela eletricidade comprada pelas hidrelétricas mais antigas — ou seja, por empreendimentos já amortizados ao longo do tempo.
Essa medida de raríssima irracionalidade econômica simplesmente destruiu o interesse dos investidores por novos investimentos em geração de energia e abortou dezenas de projetos de energia limpa e renovável que estavam prontos para ser lançados.
A afirmação do senhor procurador em defesa da energia solar não leva em conta as condições reais para a implantação de um parque capaz de gerar energia em quantidade suficiente para livrar Roraima da dependência da eletricidade venezuelana.
E essas condições reais, como é óbvio, dizem respeito ao cronograma de execução e, também, às necessidades financeiras, técnicas e ambientais do projeto. O Norte do país, realmente, é uma região ensolarada. Mas da mesma forma que a abundância de areia não torna o deserto do Saara o melhor lugar do mundo para se construir edifícios, a oferta generosa de luz solar não é suficiente para tornar essa a fonte de energia a mais recomendável para Roraima.
Um projeto nesse sentido teria que ser elaborado a partir do zero e exigiria uma grande extensão de terras para a instalação das placas de captação. Apenas a elaboração dos Estudos de Impacto Ambiental e do Relatórios de Impacto Ambiental (EIA-RIMA) de um projeto de grande porte nessa área levaria mais tempo do que a construção de uma linha de transmissão.
Seria necessário um estudo econômico-financeiro detalhado e, mais do que isso, encontrar alguém disposto a bancar a obra. Tudo isso leva tempo e custa dinheiro, mas esse detalhe parece não incomodar à autoridade.
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Investimentos compensatórios
A solução mais rápida, mais barata e de menor impacto é, sem dúvida, a Linha de Transmissão que conectaria Roraima
ao Sistema Integrado Nacional. E, para ele ser implantado, basta se sentar com as lideranças dos Waimiri Atroari e negociar diretamente com elas as condições para a instalação da linha.
Esse povo já demonstrou mais sensatez e disposição para o diálogo do que todos os demais envolvidos no projeto. Ele sabe o que quer e tem condições de falar por si mesmo sem a intermediação das ONGs que tradicionalmente lucram com as dificuldades dos povos indígenas
.
A implantação da linha de transmissão ao longo da BR-174 é, da mesma forma, o projeto de menor impacto ambiental entre todas as alternativas possíveis. Desde que sua implantação seja feita sob acompanhamento de observadores independentes interessados em encontrar uma solução — e não dos “ativistas” ambientais que sempre criam dificuldades para dar visibilidade e obter facilidades para suas organizações.
Os estudos de impacto para o Linhão já foram feitos e aprovados pelas autoridades ambientais. É preciso, finalmente, oferecer aos donos da terra aquilo que eles pedem desde o início: investimentos compensatórios que melhorem as condições de vida e saúde do povo e a garantia de que a selvageria do passado não se repetirá.
Mas o que o governo fez até aqui foi exatamente o contrário: ameaçar tirar deles serviços de assistência oferecidos pela Funai e pela Eletronorte. Enquanto esse tipo de mentalidade prevalecer o problema não se resolverá. E os maiores prejudicados serão os Waimiri Atroari, por carregar uma culpa que não lhes cabe, e o povo de Roraima, que continuará pagando caro por uma energia de péssima qualidade.