É  na Câmara dos Deputados que se definem as prioridades em relação aos gastos do governo e à política fiscal
Luis Macedo/Câmara dos Deputados - 25.10.17
É na Câmara dos Deputados que se definem as prioridades em relação aos gastos do governo e à política fiscal

Peço licença para, hoje, não tratar de contas públicas, mas de um problema que tem impacto direto sobre elas: a composição da Câmara dos Deputados, onde, ao fim e ao cabo são tomadas as decisões relativas ao dinheiro do povo. É ali que se definem as prioridades em relação aos gastos do governo e à política fiscal. Mesmo com todo esse poder, o ambiente é facilmente melindrável e reage mal a qualquer crítica que recebe, por mais justas que sejam. Toda vez que se veem na berlinda, dois argumentos, um falso e outro verdadeiro, entram em cena para reafirmar a importância e o poder do parlamento – justamente como está acontecendo agora, no bojo das discussões da reforma da Previdência.

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O argumento verdadeiro é o de que, tanto quanto o presidente da República ou os governadores dos estados, os deputados são escolhidos pelo voto direto para exercer um dos três poderes da República. Sem um Legislativo livre e atuante não há democracia e quanto a isso nem há o que discutir. O argumento falso diz que a Câmara é o retrato sem retoques da sociedade e, por essa razão, o que acontece no plenário reflete com fidelidade o pensamento e a voz das ruas. Não é bem assim. Uma análise que nem precisa ser tão profunda nos critérios de composição da casa expõe um quadro de desigualdade e preconceito que contraria frontalmente o que estabelece o artigo 5º da Constituição, segundo o qual “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”.

Injustiça e ilegalidade

O problema é que o critério desigual e ilegal à luz do artigo 5º também está previsto na Constituição. Isso mesmo: a Constituição brasileira contém um artigo que contraria seu próprio texto. O parágrafo 1º do artigo 44º fixa em 70 membros a bancada do estado de maior densidade eleitoral e em oito deputados federais as menores representações. Cotejado com o número de eleitores de cada unidade da federação, o que se vê é uma desigualdade tão flagrante que faz o voto de um brasileiro que é eleitor em São Paulo passar a valer 11,3 vezes mais se esse mesmo cidadão transferir seu voto para o estado de Roraima. São Paulo, o estado de maior população, e Roraima, o menor de todos, são os lados opostos de um sistema de representação aleijado, preconceituoso e injusto. Tomado ao pé da letra o peso do voto de cada eleitor, o paulista não é igual aos outros brasileiros. Seu voto vale menos do que o do cidadão de qualquer outro estado.

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De acordo com os dados oficiais do TSE válidos para o pleito de 2018, São Paulo tinha um total de 33.032.372 eleitores registrados e aptos a escolher os 70 integrantes de sua bancada federal. Tomada pelo número absoluto, trata-se de uma força de representação poderosa. O estado, sozinho, tem mais deputados do que as bancadas somadas dos seis estados da região Norte. Juntos, Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins têm 65.

Olimpio e Mecias

A questão é que a Câmara dos Deputados é a casa de representação do povo, não dos estados. De acordo com a lei, quem trata dos interesses dos estados não é a Câmara, é o Senado – onde cada unidade da federação tem o mesmo número de representantes: três. Não importa se o senador tenha conquistado seu posto com os 9.039.717 votos obtidos pelo Major Olimpio (PSL), o mais votado de São Paulo, ou tenha chegado lá com os 85.366 votos de Mecias de Jesus (PRB), o segundo colocado na corrida para o Senado em Roraima.

Um e outro está lá para representar o seu estado e tem exatamente a mesma importância e poder que os demais. Enquanto a lei brasileira entender que Roraima, mesmo sendo incapaz de gerar recursos suficientes para a própria manutenção e dependendo quase que integralmente de recursos do Tesouro Nacional para se manter, merece a condição de um estado da federação brasileira e não um território federal, Olimpio e Mecias continuarão tendo peso idêntico. Ponto final.

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O cenário muda quando se analisa a composição da Câmara. É nessa hora que se revela a grande injustiça e o grande preconceito contra o cidadão paulista. Dividindo-se o eleitorado pela quantidade de cadeiras reservadas para o estado no parlamento, percebe-se que são necessários 471 891 votos para se eleger um deputado federal em São Paulo. Enquanto isso, os 333.153 brasileiros que votam em Roraima têm o direito de eleger um total de oito parlamentares.

Por se tratar do estado com o menor número de eleitores, Roraima é caso o extremo mas, naturalmente, não é o único estado que leva vantagem sobre São Paulo na hora de compor a câmera. Todos os estados da federação, inclusive as outras três unidades da região Sudeste, elegem seus deputados com menos votos do que São Paulo. O número varia de estado para estado, mas sempre em prejuízo da unidade de menor população. O peso voto no Amapá, onde a divisão do número de eleitores pelo número de cadeiras é 63.978, é 7,4 vezes maior. O voto do piauiense (237.001 por cadeira) vale o dobro do paulista. Em Santa Catarina (316.776 votos por cadeira), o estado de menor diferença, o peso do eleitor é “apenas” uma vez e meia superior ao de São Paulo.

Herança da ditadura

A questão da representação eleitoral brasileira, segundo Galuppo, é um reflexo da lógica autoritária da ditadura
Tânia Rêgo/Agência Brasil - 2.5.16
A questão da representação eleitoral brasileira, segundo Galuppo, é um reflexo da lógica autoritária da ditadura

Santa Catarina, por sinal, é outra vítima da injustiça do sistema. Com um total de 5.068.421 eleitores, o estado tem uma bancada federal com 16 integrantes. O Maranhão, enquanto isso, tem um total de 4.563.193 eleitores e uma bancada com 18 deputados — ou seja, com menos eleitores, o estado nordestino elege mais deputados do que o estado do Sul. Trata-se, evidentemente, de um caso flagrante de preconceito contra o cidadão catarinense que, aos olhos da Justiça Eleitoral brasileira vale menos do que o eleitor maranhense.

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Todos esses casos devem ser analisados com paixão. A questão da representação eleitoral brasileira é um exemplo flagrante de situações que refletiam a lógica autoritária do regime militar e que ao invés de serem resolvidas com a redemocratização, ficaram ainda mais graves. Temendo uma derrota fragorosa nas urnas de 1978 – depois da surra histórica que seus representantes levaram no pleito de 1974 – a ditadura baixou o Pacote de Abril de 1977 e alterou os critérios de proporcionalidade nas eleições para a Câmara. Fixou o teto de 55 cadeiras para a maior bancada (ou seja, São Paulo) e estabeleceu em seis deputados a representação mínima dos estados menores.

A manobra teve como pretexto a busca de equilíbrio das forças na Câmara em benefício das regiões de menor relevância econômica. Esse critério, que eliminou a igualdade entre os brasileiros na hora de escolher seus representantes, foi mantido depois da volta dos civis ao poder e ganhou contorno definitivo nesta década com o Decreto Legislativo 1361 de 2013, do Senado. O texto tornou sem efeito uma decisão do TSE, que redistribuiu as cadeiras na Câmara de acordo com a variação da população aferida pelo censo demográfico do IBGE. E tudo permaneceu como antes.

Se a lógica canhestra da ditadura foi criada para manter a maioria arenista na Câmara dos Deputados e retardar o avanço da redemocratização brasileira, hoje ela serve sobretudo para manter o status quo corporativista da Câmara dos Deputados . Está mais do que comprovado que os eleitores dos estados menores são mais vulneráveis ao jogo populista e são tradicionalmente mais sujeitos à manipulação política. Mas isso é uma outra discussão.

Menos peso

Ninguém está dizendo aqui que o eleitor paulista é mais preparado nem que ele vota melhor do que os de outros estados. Nada disso. São Paulo é um estado plural, capaz de eleger com a mesma ordem de grandeza de votos (na casa dos 155 mil) parlamentares de condutas, biografias e ideologias tão diferentes quanto Alexandre Frota (PSL) e Ivan Valente (PSOL). Um e outro, por mais críticas que recebam, conseguiram mobilizar uma parcela idêntica do eleitorado para obter seus mandatos e são, portanto, representantes legítimos do povo. Ponto final. O que está sendo dito com todas as letras é apenas o seguinte: independente de quem ele escolha ou deixe de escolher, o eleitor paulista tem menos peso que os demais na composição da Câmara. Ponto final.

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Tirando os extremos – ou seja, São Paulo numa ponta e os estados de menor população da outra – existe um certo equilíbrio entre o que cada estado representa no total do eleitorado do País e o tamanho de sua bancada no plenário da Câmara. Sim: com diferenças para mais ou para menos, as bancadas da maioria dos estados tem um peso na Câmara equivalente ao de seus eleitores no conjunto do País. Os 15.695.210 eleitores de Minas Gerais , por exemplo, representam 10,69% do conjunto de cidadãos que ajudaram a compor a Câmara dos Deputados. Trata-se de um percentual equivalente aos 10,33% que as 53 cadeiras da bancada mineira significam no conjunto de 513 integrantes da Câmara federal. Goiás tem 4.453.034 eleitores (3,03% do total) e 17 deputados (3,31%). Ou seja, a diferença entre representantes e representados é estatisticamente desprezível. São Paulo, por sua vez, tem 22,51% dos eleitores e apenas 13,65% da casa – uma distância quilométrica.

Burgos podres

Esse problema, claro, não se resolverá por si mesmo até porque há na Câmara mais gente ganhando do que perdendo com esse arranjo. Essa injustiça e essa ilegalidade tendem a se perpetuar e , como desejava a ditadura, continuar inflando o peso dos grotões que o presidente Tancredo Neves chamava de “burgos podres” na composição da Câmara. Haveria, sim, meios de corrigir essa ilegalidade e resolver o problema de uma vez por todas. Um deles seria fixar o eleitorado da menor unidade como base para definição da bancada de todos os estados. A exemplo do que acontece nos Estados Unidos , onde os estados menos populosos elegem apenas um representante, Roraima e outros estados de menor densidade eleitoral teriam apenas um deputado. Haveria uma redistribuição geral no tamanho das bancadas eleitorais.

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A bancada do Rio de Janeiro, por esse critério, cairia de 46 para 37 deputados. A do Paraná, iria de 30 para 24 e Pernambuco, de 25 para 20. São Paulo, por sua vez saltaria dos atuais 70 para um total de 99 parlamentares. Mesmo assim, o total da Casa cairia dos atuais 513 para 441 parlamentares. Outra forma de resolver o problema seria manter a bancada paulista com os atuais 70 integrantes e utilizar o número de referência para eleger um representante (471.891 votos) como base para os demais estados. Roraima, onde o número de eleitores é inferior a esse, teria o direito a um representante. O Rio de Janeiro teria 26 deputados, o Paraná ficaria com 17 e Pernambuco, 14. Nesse caso, a queda do número de deputados seria ainda mais expressiva e a Câmara passaria a ter 311 deputados – o que, além de corrigir uma injustiça histórica, ajudaria a reduzir o custo para manutenção do Legislativo. Isso em nada prejudicaria a força do parlamento. A medida poderia ser completa com a redução de três para dois o número de representantes de cada unidade da federação no Senado – que cairia de 81 para 54 parlamentares. É um sonho, tudo bem. Mas, como diz o ditado, sonhar não custa nada.


(O conteúdo desta coluna não necessariamente representa a opinião editorial do iG)

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