Nos últimos anos as empresas de telefonia celular se tornaram as com maior valor de capital no mundo, muito disso em razão da difusão de seus aparelhos smartphones, que hoje, além de serem objetos de desejo imediato, se tornaram fundamentais no dia a dia do cidadão.
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Agrega-se à venda dos celulares, seus respectivos acessórios, bem como a comercialização de notebooks, ipods, ipads, smartwatches, dentre outros. Todavia, nota-se que é cada vez maior o número de reclamações acerca da durabilidade desses produtos no Brasil e no mundo.
À guisa de exemplo, cita-se o número significativo de reclamações que essas empresas colecionam em tribunais norte-americanos. Lá, afirma-se que os produtos oferecidos são colocados à disposição dos consumidores já com prazo de vida útil determinado, visando sua constante recompra, posto que apresentam recorrentes falhas na sua utilização após o prazo de garantia.
O mesmo fenômeno ocorre no Brasil, onde o número de reclamações contra tais empresas aumenta a cada dia.
Diante da tal fato, a própria Apple , no fim de 2019, ofertou carta aberta aos consumidores norte-americanos desculpando-se pelo baixo desempenho de seus produtos após determinado prazo de uso.
Reforce-se que o vício do produto não se dá em razão da fruição normal do mesmo, mas sim, pela sua obsolescência programada, isto é, independentemente da boa utilização do bem, este perecerá esgotado o prazo de validade estipulado, porém, muito antes do tempo imaginado pelo consumidor ao adquiri-lo.
Os estudos acerca da obsolescência programada não se confundem com a impossibilidade de desenvolvimento e inovação tecnológica. Não se trata de uma política de manutenção permanente do bem (isso seria impensável), mas sim, da busca de um meio termo.
De igual forma, não se trata de responsabilizar ad aeternum o fornecedor, posto que um dia os produtos inevitavelmente perecerão; todavia, estes devem ser responsabilizados por vícios ocultos quando ultrapassado o prazo de garantia ofertada.
Exemplificando de uma outra maneira. Em casos de construção civil, a construtora emite um laudo técnico garantindo a estrutura da obra por determinado período de tempo.
Contudo, ultrapassado este lapso temporal, não se desvincula de alguma falha que eventualmente possa aparecer nas estruturas. Em português comum, a edificação não pode cair depois do prazo técnico estipulado pela própria construtora.
O mesmo raciocínio se aplica aos aparelhos de telefonia celular. Não pode o consumidor ser surpreendido pela paralisação ou inutilidade parcial de seu telefone pelo simples fato de não ter feito uma atualização ou pelo decurso do tempo.
Lembre-se, inclusive, que a depender da versão do aparelho , a própria atualização imposta pela empresa se torna incompatível com a mecânica e capacidade do aparelho, tornando-o obsoleto e inutilizável.
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Toda essa sistemática é caracterizada por um vício oculto no bem, sendo que o fornecedor é sabedor que o aparelho por ele disponibilizado no mercado entrará em inoperância após a decorrência de um tempo pouco razoável, forçando o consumidor a adquirir um modelo mais atual.
Ao se falar em garantia dada ao consumidor, devemos entendê-la em seu sentido amplo, ou seja, da garantia total, traduzida na soma da garantia contratual com os prazos legais de 30 ou 90 dias, a depender da durabilidade do bem.
O problema se mostra mais complexo quando o produto apresenta vício oculto expirado o prazo de garantia. O que fazer nesses casos? Ficaria o consumidor desamparado suportando o prejuízo?
Por certo que não. Em obediência aos princípios da boa-fé, razoabilidade e vedação do enriquecimento ilícito, deverá ser averiguado o tempo médio de vida útil do produto, para que o consumidor obtenha a justa reparação em caso de quebra ou inutilização, ultrapassado o prazo de garantia total (arts. 18 e 26, § 3º, do CDC).
No que concerne ao estudo do vício oculto, José Carlos Maldonado de Carvalho em sua obra “Garantia legal e garantia contratual : vício oculto e decadência no CDC”, nos ensina as três posições doutrinárias clássicas acerca do tema:
“São três as posições doutrinárias a respeito do assunto. Paulo Jorge Scartezzini Guimarães propõe a aplicação subsidiária do Código Civil, que prevê o prazo de 180 dias durante o qual o vício oculto pode se manifestar (Art. 445, “caput” e §1º), argumentado que este limite é suficiente para “descoberta de qualquer falta de qualidade ou quantidade do produto”. Já, Paulo Luiz Netto Lôbo, doutrina que o prazo de garantia legal deve ser o mesmo prazo de garantia contratual concedido pelo fabricante, que “pressupõe a atribuição de vida útil pelo fornecedor que o lança no mercado e é o que melhor corresponde ao princípio da equivalência entre fornecedores e consumidores. Por fim, Antônio Herman de Vasconcellos Benjamin defende o critério da vida útil do produto para definição do limite temporal de garantia legal. Sustenta o Ministro-Professor, em breve síntese, que o legislador evitou fixar “um prazo totalmente arbitrário para a garantia, abrangendo todo o e qualquer produto”, prazo este que seria “pouco uniforme entre os incontáveis produtos oferecidos no mercado”. A própria realidade do mercado de consumo mostra o inconveniente em colher-se qualquer uma das duas primeiras correntes doutrinárias, restando, assim, apenas o exame da terceira”.
No entendimento de que a garantia do bem e seus acessórios se estendem para além do prazo estipulado pela empresa e pela lei, vem o voto do Min. Luis Felipe Salomão em decisão do STJ.
“(...), porém, em se tratando de vício oculto não decorrente do desgaste natural gerado pela fruição ordinária do produto, mas da própria fabricação, o prazo para reclamar a reparação se inicia no momento em que ficar evidenciado o defeito, mesmo depois de expirado o prazo contratual de garantia, devendo ter-se sempre em vista o critério da vida útil do bem, que se pretende “durável”. A doutrina consumerista – sem desconsiderar a existência de entendimento contrário – tem entendimento que o CDC, no § 3º do art. 26, no que concerne à disciplina do vício oculto, adotou o critério da vida útil do bem, e não o critério da garantia, podendo o fornecedor se responsabilizar pelo vício em um espaço largo de tempo, mesmo depois de expirada a garantia contratual. Assim, independentemente do prazo contratual de garantia, a venda de um bem tido por durável com vida útil inferior àquela que legitimamente se esperava, além de configurar um defeito de adequação (art. 18 do CDC), evidencia uma quebra de boa-fé objetiva, que deve nortear as relações contratuais, sejam elas de consumo, sejam elas regidas pelo direito comum. Constitui, em outras palavras, descumprimento do devem de informação e a não realização do próprio objeto do contrato, que era a compra de um bem cujo ciclo vital se esperava, de forma legítima e razoável, fosse mais longo. Os deveres anexos, como o de informação, revelam-se como uma das faces de atuação ou “operatividade” do princípio da boa-fé objetiva, sendo quebrados com o perecimento ou a danificação de bem durável de forma prematura e causada por vício de fabricação. Precedente citado: REsp 1.123.004-DF, DJe 09/12/2011” (REsp 984.106-SC, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 04/10/2012.
Comente-se que o vício apresentado no produto, conforme expresso no trecho do julgado em comento, não é algo que decorre da utilização ordinária do bem, mas sim, uma anormalidade intrínseca deste, que somente se revela com o seu uso. Nasce, portanto, o direito do consumidor de ter reparado seu prejuízo independentemente do fim do prazo de garantia.
Ressalte-se que o prazo conferido para o consumidor reclamar seus direitos não é perpétuo. Em razão dos princípios da boa-fé objetiva, razoabilidade e vedação do enriquecimento ilícito , para que a reclamação seja legítima, faz-se necessária a verificação da vida útil do produto acometido pelo vício. Nesse sentido, a análise do caso concreto será fundamental para verificação do decurso do prazo decadencial.
Diante de todos os argumentos expostos e em consonância com o entendimento jurisprudencial e doutrinário mais avançado, entendemos que a adoção do critério da vida útil melhor se coaduna teleologicamente com os princípios trazidos pelo CDC, uma vez que, tem o consumidor expectativa legítima de utilizar do bem que adquiriu por um prazo razoável de tempo, não podendo ser surpreendido por defasagem de desempenho por atualizações programadas ou por avarias já projetadas pelo fabricante.
Perfeitamente plausível, nesse contexto, o afastamento da regra carreada pelo art. 445, § 1º, do CC, por tratar-se de norma mais favorável ao fornecedor, sendo que o princípio a ser sempre obedecido é o da aplicação da norma mais benéfica ao consumidor, em razão de sua condição de vulnerabilidade na relação de consumo .