Conforme já estudamos em textos passados, o Código de Defesa do Consumidor é resultado de um longo processo histórico de lutas por melhorias nas condições de trabalho e na qualidade dos produtos disponibilizados no mercado. Nesse sentido, passamos a dar especial atenção ao tema a partir da década de 60, sendo reforçada a necessidade de edição de lei específica para a questão após a realização de dois congressos internacionais em 1985 e 1987.
Veja também:
Venda casada: entenda o que é e os direitos do consumidor
Constitucionalização da defesa do consumidor
Lei Geral de Proteção de Dados: as competências da ANPD e o Procon
Finalmente, a Constituição Federal
de 1988 elevou a defesa do consumidor ao patamar de direito e garantia fundamental, não podendo sequer sofrer qualquer tipo de revogação ou supressão por se tratar de cláusula pétrea e de princípio norteador das relações econômicas.
Levando-se em consideração o caráter humanista de nossa Carta Magna; alcunhada de “Constituição Cidadã” pelo ex-senador Ulysses Guimarães, sempre que voltamos nossos olhos ao CDC, devemos interpretá-lo sob a ótica de norma pública que visa garantir o melhor interesse da coletividade (art. 1º do CDC). Diante disso, as demais legislações correlatas que vierem a regular setores específicos da atividade econômica devem, necessariamente, ter compatibilidade com a CF/88 e o CDC.
Em que pese a controvérsia de tempos passados, atualmente verificamos a pacificação do entendimento da aplicabilidade do CDC aos contratos de transporte, tendo em vista que se trata de fornecimento de transportes em geral, caracterizando-se como atividade humana voltada à prestação de serviços.
Diante destas premissas, nos causou espanto a edição da Res. 556 da Agência Nacional de Aviação Civil – Anac , de 13 de maio de 2020, que em seu art. 3º, I, suspendeu a obrigação do fornecedor de promover a assistência material ao consumidor quando a alteração do voo, seu atraso, cancelamento ou interrupção for decorrente do fechamento de fronteiras ou de aeroportos por determinação das autoridades competentes.
Entende-se como assistência material o dever do fornecedor em satisfazer as necessidades do consumidor, devendo ser oferecida gratuitamente, conforme o tempo de espera, ainda que os passageiros estejam a bordo da aeronave com portas abertas, variando de facilidades de comunicação; alimentação, de acordo com o horário, por meio do fornecimento de refeição ou de voucher individual; até serviço de hospedagem, em caso de pernoite, e traslado de ida e volta, conforme conceito trazido pelo art. 27, incisos I à III, da Res. 400/16 da Anac.
Com o devido respeito à referida agência, no nosso entendimento, a retirada do dever de oferecimento de assistência material ao consumidor, além de inconstitucional, viola os princípios fundamentais das relações de consumo do CDC e afronta o Código Brasileiro de Aeronáutica (Lei 7.565/86); a Convenção de Montreal (Dec. 5.910/06); a Medida Provisória 925/20 e a Res. 400/16, editada pela própria Anac.
O Código Brasileiro de Aeronáutica (CBA) é uma lei especial que encontra, atualmente, aplicabilidade às relações de consumo quando compatível com o CDC, tendo, inclusive, o Superior Tribunal de Justiça se manifestado a respeito no seguinte sentido:
"(...)Resta caracterizada relação de consumo se a aeronave que caiu sobre a casa das vítimas realizava serviço de transporte de malotes para um destinatário final, ainda que pessoa jurídica, uma vez que o artigo 2º do Código de Defesa do Consumidor não faz tal distinção, definindo como consumidor, para os fins protetivos da lei, "... Toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final". (Resp 540235/TO, Recurso Especial 2003/0059595-9, Ministro Castro Filho, Terceira Turma, DJ 06.03.2006).
Já nos primeiros anos da Faculdade de Direito, qualquer aluno que entrar em contato com o sistema piramidal da hierarquia das normas, elaborado pelo juris-filósofo alemão Hans Kelsen, verá que em um Estado Federativo como o brasileiro, a Constituição Federal é a lei fundamental, a lei primeira, servindo de paradigma para todas as demais legislações.
Abaixo da CF, suas emendas e tratados internacionais de Direitos Humanos ratificados em dois turnos pela maioria qualitativa das duas Casas do Congresso Nacional, encontramos as Leis Complementares, ocupando posição intermediária entre a CF e as Leis Ordinárias.
Você viu?
Posteriormente, cada uma em seu grau hierárquico, temos as Constituições Estaduais; Leis Delegadas, Medidas Provisórias, Decretos Legislativos, Resoluções e, leis e portarias municipais.
Neste sentido, deve prevalecer o entendimento que todas as disposições legais existentes no ordenamento jurídico, inclusive às atinentes aos contratos de transporte aéreo, deverão seguir os preceitos erigidos pela CF (lei maior) e, em segundo plano, com os diplomas legais hierarquicamente superiores.
O CDC foi editado em estrita obediência aos termos dos arts. 5º, XXXII e 170, V da CF, caracterizando a defesa dos interesses dos consumidores como direito e garantia fundamental e como princípio geral da atividade econômica. Desta feita, qualquer tipo de norma infraconstitucional que atinja a dignidade da pessoa humana e a justa relação econômica entre as partes deverá ser excluída do ordenamento por incompatibilidade material à CF.
Não resta dúvida que, em períodos de excepcionalidade como os atuais, no qual o mundo teve que readaptar todas as relações interpessoais em razão da pandemia do Coronavírus, deixar de prover assistência material básica aos consumidores que, por estarem viajando não puderam retornar ao seu lugar de origem, rompe parâmetros mínimos de civilidade e dignidade, bem como enseja em uma relação econômica desarmoniosa e injusta.
Independentemente da interpretação “rebus sic stantibus” dos contratos que fomentam as relações de consumo, o art. 14 do CDC é inequívoco ao atribuir responsabilidade objetiva ao fornecedor, tendo este o dever, independentemente de ter agido por dolo ou culpa, de indenizar e custear a assistência material ao consumidor (em caso de contratos de transporte aéreo), por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.
Tal entendimento deve prevalecer, portanto, em relação ao preceito de responsabilidade subjetiva trazido pelo art. 256, II e § 1º, alínea “b”, do CBA, que exime o fornecedor de responsabilidade quando o dano causado for resultado de força maior ou comprovada determinação de autoridade aeronáutica.
No que tange à prevalência do CDC sobre o CBA, nos ensina o Ministro Luis Felipe Salomão, em julgado do STJ:
"(...)Apesar de o terceiro – vítima do acidente aéreo – e o transportador serem, respectivamente, consumidor por equiparação e fornecedor, o fato é que o CDC não é o único diploma a disciplinar a responsabilidade do transportador por danos causados pelo serviço prestado. O CBA disciplina também o transporte aéreo e confere especial atenção à responsabilidade civil do transportador por dano tanto a passageiros quanto a terceiros na superfície. Não obstante isso, para além da utilização de métodos clássicos para dirimir conflitos aparentes entre normas, busca-se a força normativa dada a cada norma pelo ordenamento constitucional vigente, para afirmar que a aplicação de determinada lei – e não de outra – ao caso concreto é a solução que melhor realiza as diretrizes insculpidas na lei fundamental. Por essa ótica hierarquicamente superior aos métodos hermenêuticos comuns, o conflito entre o CDC e o CBA – que é anterior à CF/88 e, por isso mesmo, não se harmoniza em diversos aspectos com a diretriz constitucional protetiva do consumidor – deve ser solucionado com prevalência daquele (CDC), porquanto é a norma que melhor materializa as perspectivas do constituinte no seu desígnio de conferir especial proteção ao polo hipossuficiente da relação consumerista. (...)" (REsp 489.895-SP, DJe 23/4/2010. REsp 1.281.090-SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 7/2/2012).
Ainda no sentido do dever do fornecedor em prestar assistência material ao consumidor nos contratos de transporte aéreo, o art. 26 da Res. 400/16 da ANAC diz que a assistência material ao passageiro deverá ser oferecida em caso de atraso do voo; cancelamento do voo; interrupção de serviço; ou preterição de passageiro, excepcionando tal exigência apenas para o passageiro que residir na localidade do aeroporto de origem ou optar pela reacomodação em voo próprio do transportador (art. 26, §§ 1º e 3º).
Por fim, o art. 3º da MP 925/20, editada já no período da pandemia de Coronavírus, é claro ao salvaguardar o direito de assistência material aos consumidores, in verbis: "O prazo para reembolso de valor relativo à compra de passagens aéreas será de 12 meses, observadas as regras do serviço contratado e mantida a assistência material, nos termos da regulação vigente".
Desta maneira, em observância ao vasto arcabouço legal citado e ao sedimentado entendimento dos Tribunais Superiores, não podemos admitir a sobreposição da Res. 556/20 da ANAC aos dispositivos constitucionais, CDC, MP 925/20 e Res. 400/16, da própria ANAC, vez que deixar o consumidor em desamparo, fora de seu lugar de origem, biopsicologicamente abalado pela pandemia global, seria um retrocesso a qualquer passo civilizatório de nossa sociedade.