Lula e Haddad têm a reforma tributária como uma das prioridades neste início de mandato
Marcelo Camargo/Agência Brasil - 10/03/2023
Lula e Haddad têm a reforma tributária como uma das prioridades neste início de mandato

Com a discussão a respeito da  reforma tributária em alta, o governo tem reforçado seu posicionamento a favor do aumento de impostos sobre as pessoas mais ricas,  reduzindo a carga tributária sobre as camadas mais pobres da sociedade.

Isso traz à tona um tema que é discutido no Brasil há pelo menos 35 anos: o Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF). Previsto na Constituição de 1988, o IGF nunca chegou a ser instituído no país, embora cerca de 50 projetos de lei já tenham sido propostos no Congresso Nacional desde então.

O que é grande fortuna?

Em seu artigo 153, a Constituição prevê a instituição de impostos sobre grandes fortunas "nos termos de lei complementar". Essa lei, porém, nunca foi aprovada. Dentre os projetos apresentados na Câmara dos Deputados e no Senado, é possível encontrar diferentes definições do que seria uma grande fortuna, que é justamente um dos grandes impasses para essa legislação avançar.

Há projetos que falam em taxar patrimônios superiores a R$ 2 milhões, enquanto outros citam fortunas maiores que R$ 50 milhões. Na maioria dos casos, prevê-se alíquotas progressivas, que aumentam conforme o tamanho da riqueza do contribuinte.

"Quando você olha para o resto do mundo, também há uma discrepância na definição do que é grande fortuna entre os países que adotaram esse imposto", comenta Lorreine Messias, mestre em Economia e pesquisadora do Insper.

Para Priscila Anselmini, advogada tributarista e doutora em Direito, essa indefinição do que é uma grande fortuna impacta na adesão que o IGF têm na sociedade. De acordo com o levantamento Panorama Político 2023, realizado pelo Senado, 34% dos brasileiros desaprovam a criação de um imposto sobre grandes fortunas, contra 62% que apoiam.

A especialista acredita que a opinião pública poderia ser mais favorável a esse tipo de tributo se a definição do conceito de grande fortuna fosse mais clara. "Quando se fala de taxação dos ricos, se pensa que quem tem R$ 100 mil numa poupança, por exemplo, vai ser tributado. E não", afirma Priscila.

A mesma pesquisa do Senado mostra que 13% dos brasileiros acham que grande fortuna é um patrimônio abaixo de R$ 1 milhão; 31%, entre R$ 1 milhão e R$ 10 milhões; 24%, acima de R$ 10 milhões; e 32% não souberam ou preferiram não responder.

Em 2021, o Brasil tinha cerca de 266 mil pessoas com patrimônio acima de US$ 1 milhão (cerca de R$ 5 milhões), de acordo com o Global Wealth Report 2022, relatório do Credit Suisse. Se esse fosse o valor definido como grande fortuna, por exemplo, apenas 0,12% da população seria taxada pelo IGF.

"O IGF visa tributar a propriedade e a riqueza, mas, em contrapartida, visa a redução dos impostos sobre consumo e serviços. E isso é pouco debatido, porque quando se fala em taxação de riquezas, se esquece que não está se querendo a instituição de mais um tributo, mas sim uma reforma tributária de maneira geral, ao ponto de ter essa redução na base", argumenta Priscila, reforçando que o principal intuito do IGF é taxar uma pequena parcela de mais ricos para criar mecanismos de ajuda à grande parcela de mais pobres.

"Quando a gente olha para os tributos, a gente tem que pensar que isso volta para a população", afirma Natassia Nascimento, doutoranda em Economia. "Se a gente quer ter um país com o tamanho do SUS que a gente tem, com o assistencialismo que a gente tem, que são importantes para reduzir a pobreza, é necessário taxar os mais ricos", completa.

Para Natassia, o IGF já poderia ter sido instituído se houvesse vontade política. "Eu tenho certeza que algum deles [os vários projetos propostos no Congresso] serve. Mas quem é que está lá no Senado? Qual o grupo político que a gente vai tentar agradar?", questiona.

"Essa é uma discussão que geralmente é alimentada muito mais por paixões e ideologias do que propriamente por embasamento técnico", complementa Lorreine.

Além do IGF

Quando se fala no IGF, além das questões políticas envolvidas, há críticas a respeito da capacidade de arrecadação desse imposto. Pesquisadora do tema, Lorreine afirma que a eficiência arrecadatória do IGF, sozinho, é baixa.

Mas o IGF não é a única maneira de fazer pessoas ricas pagarem mais impostos, e algumas experiências internacionais mostram isso. "A Espanha, por exemplo, considera nas suas grandes fortunas obras de arte, a Índia considera joias. Isso é muito relativo de país para país, tem a ver com a cultura de cada um deles", exemplifica Natassia. "O Peru tributa alguns bens de luxo, como iates e helicópteros. Na Dinamarca, existe um IPTU mais caro se você tem uma casa de praia, por exemplo", completa.

No Brasil, as pesquisadoras afirmam que seria possível mexer em alguns impostos já existentes para que eles atingissem de forma mais intencional a parcela mais rica da população, melhorando a arrecadação em diversos âmbitos.

O país tem impostos sobre propriedade e herança, como o Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU), o Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA), o Imposto Territorial Rural (ITR), o Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD) e o Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis (ITBI).

"Parece ser recomendável, em termos de política pública, buscar a melhoria da qualidade dos tributos que já existem sobre o patrimônio", avalia Lorreine. "Esses tributos que já estão na mesa há décadas merecem ser olhados com maior atenção, ainda mais porque eles estão nas mãos de entes subnacionais, principalmente municípios, que muitas vezes não têm o mesmo grau técnico da União para poder melhorar a qualidade desses tributos", continua.

Uma possível mudança, por exemplo, seria a inclusão de alguns veículos de luxo, como iates, jatos e helicópteros, no IPVA, que atualmente só incide sobre veículos automotores. "A gente sabe que esses são bens de luxo, eles compõem a riqueza. Uma pessoa que tem um iate ou um helicóptero é uma pessoa rica", comenta Natassia.

Outra modificação possível em impostos já existentes seria aumentar a alíquota do imposto sobre herança, que é baixa no Brasil quando comparada com outros países.

"Eu não acho que o imposto sobre grandes fortunas seja a solução de todos os problemas da riqueza, mas ele é um bom instrumento para isso. O que eu acredito é que a gente tem que tributar a riqueza em suas diversas formas", defende Natassia.

Uma das grandes críticas à tributação de pessoas ricas é a possibilidade de aumentar a evasão fiscal ou a fuga de capital. Natassia e Priscila argumentam, porém, que o Brasil tem mecanismos e tecnologias suficientes para realizar esse tipo de controle, fiscalizando o pagamento de impostos.

'Colocar o rico no Imposto de Renda'

Além dos impostos sobre propriedade e herança, as pesquisadoras apontam que outra forma de taxar os mais ricos é através da renda. Desde a campanha eleitoral, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) defende que é necessário "colocar o pobre no Orçamento e o rico no Imposto de Renda", frase que se tornou quase um slogan repetido diversas vezes por seu ministro da Fazenda, Fernando Haddad.

Nesse sentido, algumas mudanças fundamentais poderiam ser feitas no Imposto de Renda para aumentar a contribuição da parcela mais rica da sociedade. Uma das grandes alterações seria acabar com a isenção de lucros e dividendos.

"Isso é uma anomalia brasileira que beneficia muito quem é mais rico", avalia Natassia. Priscila concorda: "O Brasil é um dos poucos países que têm essa isenção, e se você for analisar pela Justiça fiscal, é um absurdo que o Brasil não tribute. Não há uma justificativa para não se ter essa tributação".

Outra mudança que poderia ser feita no Imposto de Renda para tributar mais os mais ricos é alterar as faixas de renda. Atualmente, a faixa mais alta, com alíquota de 27,5%, é destinada a quem tem renda maior que R$ 4.664,68 mensais.

Isso significa que se uma pessoa recebe R$ 5 mil e outra recebe R$ 50 mil, as duas pagam a mesma alíquota de Imposto de Renda. "Poderia se implementar alíquotas mais progressivas para faixas de renda mais altas, além de criar mais faixas de renda", sugere Natassia.

Mudanças no Imposto de Renda substituem IGF?

Diante dessas possíveis mudanças no Imposto de Renda, o diretor de Programa da Secretaria Extraordinária da Reforma Tributária do Ministério da Fazenda, Rodrigo Orair, defendeu, na última semana, que se houver um Imposto de Renda bem consolidado, não há a necessidade de mudar as tributações sobre patrimônio. Ele acrescentou, ainda, que a pasta não trabalha em uma proposta para grandes fortunas neste momento.

Para as pesquisadoras, porém, as mudanças no Imposto de Renda não substituem outras formas de tributação. "Acho que mexer no Imposto de Renda é o mais fácil, porém não seria a solução de todo o problema", avalia Natassia. "A riqueza tem que ser tributada de alguma forma, seja ela qual for, mas preferencialmente de todas as formas. Tanto para evitar a elisão fiscal, quanto para a gente tentar pegar todos os casos e exceções que existem", completa.

"Se a gente quer ter um sistema tributário que redistribua o ônus fiscal de forma equânime em todas as classes sociais, a gente precisa se preocupar com esses três pontos chaves da pirâmide tributária: imposto sobre consumo e serviços, renda e patrimônio. Então, não se pode só atacar o Imposto de Renda sem pensar na questão do patrimônio e muito menos na questão do consumo", argumenta Priscila. "Tem que ser uma reforma tributária geral", defende.

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