"Lamentável" é como define Dom Vicente o acordo fechado nesta quinta-feira (4) entre a Vale
e o governo de Minas Gerais
para reparar a tragédia acontecida em Brumadinho
há dois anos
. Dom Vicente é Bispo referencial da Região Episcopal Nossa Senhora do Rosário, que atua na área atingida da Bacia do Paraopeba, e é um dos que se indigna pelo fato de nenhum atingido da tragédia ter sido consultado a respeito do acordo.
"Como se faz um acordo sem ouvir as pessoas que estão no meio desta lama?", questiona a técnica química Cláudia Márcia Gomes Saraiva, uma das atingidas. Além de morar a 150 metros do rio, ela também perdeu entes queridos na tragédia. "No dia, a gente viveu todo o caos", lembra.
Sem consultar os atingidos como Cláudia, Vale e governo de MG chegaram a um consenso de que a mineradoria vai pagar R$ 37,68 bilhões ao estado pela reparação. A aliança bilionária foi definida pelo governador de MG, Romeu Zema , como histórica.
"Não podemos mudar o passado, que muitas vezes foi triste e trágico, mas podemos fazer um futuro melhor, e é exatamente isso que nós estamos concretizando neste momento. É um acordo inédito em muitos pontos. Nunca no Brasil se fez um acordo dessa magnitude", disse ele durante a assinatura do acordo nesta manhã.
Para Dom Vicente, porém, o fato não deve ser comemorado. "É lamentável e nos causa muita indignação ver tanta gente comemorando como um acordo histórico bilionário. É triste porque nós, que acompanhamos as comunidades atingidas, temos tantos testemunhos de comunidades em Brumadinho, região, ao longo de toda a Bacia do Paraopeba, e escutar todos os dias que os atingidos e atingidas não participaram desse acordo. Isso é um absurdo", disse ele, em vídeo publicado no Instagram.
A Associação dos Familiares de Vítimas e Atingidos pelo Rompimento da Baragem Mina Córrego do Feijão, a Avabrum , garante que não foi consultada a respeito do acordo.
"Fomos mais uma vez excluídos do processo, cujo dinheiro advém do sangue das nossas Joias. Esperamos que o dinheiro desse acordo seja aplicado na reparação, que traga melhorias e bem-estar aos municípios verdadeiramente impactados e que honre a memória dos nossos", escreveu a associação em nota.
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Problemas não vêm de hoje
"A maioria dos atingidos não tem voz. Eu me sinto indignada, não me sinto representada. Por mais que a gente fale e grite, nossa voz é abafada", relata Cláudia, lembrando que não é de hoje que o governo de MG ignora a voz de quem sofreu e sofre com o ocorrido em Brumadinho
.
Ainda em 2019, moradores do distrito Ponte das Almorreimas , em Brumadinho, foram desapropriadas para que a Vale pudesse fazer uma obra de capitalização de água. Cláudia foi uma dessas pessoas, e hoje representa os habitantes da área.
"Eu nunca vi isso na minha vida, uma criminosa receber do governo um aval para invadir terra particular para ela pagar um crime que ela mesmo cometeu", comenta.
Para Cláudia, o acordo fechado nesta quinta-feira foi apenas mais um que o governo do estado realizou sem consultar qualquer um dos atingidos. "Hoje, eu me sinto violada em todos os meus direitos. Humano, moral, dignidade a gente não tem. Porque eu não fui consultada pelo Zema hora alguma sobre a invasão do nosso terreno e nem se podia matar meus familiares".
Dinheiro não é justiça
Cláudia critica a gestão de Romeu Zema
no governo do estado e afirma que tudo o que os moradores atingidos de Brumadinho querem é justiça e punição para a Vale. "O maior negócio da vida dele [o governador Romeu Zema] foi o sangue dos nossos. Quem morreu não volta. Não há reparação para vidas, jamais haverá. A gente quer justiça, a gente não quer Rodoanel".
A fala de Cláudia faz referência ao destino do dinheiro acordado
nesta quinta-feira, que terá parte destinada para a construção de um Rodoanel
na região metropolitana de Belo Horizonte. De acordo com o governo do estado, cerca de 30% dos mais de R$ 37 bilhões serão destinados ao município e a população de Brumadinho
. O restante será aplicado em investimento em infraestrutura
em todo o estado.
"Como diz Papa Francisco nos seus documentos todos, não é possível aceitar que empresas multinacionais que violam e destroem os territórios, matam pessoas, também comandem os processos de reparação. Isso é lamentável", afirma Dom Vicente.
"A gente exige justiça. Não adianta dinheiro no mundo que pague nossos entes, mas a justiça talvez acalente nosso coração. Não há punição, só há pessoas se beneficiando da desgraça e do sangue dos nossos. Não morreram só 273 pessoas, não. Estão morrendo pessoas todos os dias. O índice de suicídio aqui é grande. Então, a Vale não matou, ela continua matando", conclui Cláudia.