É aquela história mais do que manjada: há duas notícias a serem comentadas neste artigo, uma boa outra ruim. A boa são os sinais ainda tímidos, mas já estimulantes, de recuperação da economia, divulgados na última terça-feira.
A notícia ruim, ou melhor, péssima, é a decisão da Comissão Mista de Orçamento do Congresso Nacional , que resolveu aumentar para R$ 3,8 bilhões o total de dinheiro do povo destinado a bancar campanhas eleitorais.
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São notícias aparentemente desencontradas. À primeira vista, não existe a menor relação entre uma coisa e outra. Quem reparar direito, no entanto, verá que elas estão unidas num encaixe tão perfeito que torna-se difícil não tratá-las como peças de uma mesma máquina
que, no Brasil, já não vem funcionando bem há muito tempo.
A máquina, no caso, é a bomba que, de um lado, tira dinheiro da sociedade , na forma de impostos, e, do outro, utiliza esses recursos para irrigar a máquina do governo e os investimentos do setor público. Quanto mais dinheiro entrar, mais gastos podem ser feitos.
Como a economia, daqui por diante, deve funcionar num ritmo mais acelerado do que funcionou até aqui, é razoável imaginar que o orçamento público de 2020 tende a ser mais folgado do que o de 2019.
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Economia mais aquecida é, por definição, sinônimo de aumento na arrecadação de impostos. Sendo assim, a tendência é que sobre mais dinheiro para os investimentos públicos
, que andam comprimidos desde que o governo de Dilma Rousseff empurrou o Brasil para a maior crise econômica de sua história.
Mentalidade estroina
O crescimento do PIB
entre janeiro e setembro desde ano foi de 1%. Parece pouco — e
é pouco mesmo. Mas para uma economia que vinha nos últimos anos alternando quedas
com crescimentos pífios, é motivo de alívio.
Ele indica, numa comparação razoável, uma melhora no estado geral de um paciente que ainda está longe de receber alta, mas já está melhor do que antes.
Com o anúncio desse número, o humor mudou de uma hora para outra e as mesmas vozes que previam uma economia ainda claudicante nos próximos meses passaram a projetar um crescimento superior a 2% para o PIB de 2020.
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Se isso realmente acontecer, haverá mais negócios , mais empregos e mais consumo. Com isso a arrecadação, como parece óbvio, subirá. Com isso, sobrará mais dinheiro para os investimentos.
O problema é que, no Brasil, o Estado e seus representantes têm uma mentalidade estroina: não podem ver dinheiro em caixa que, ao invés de utilizá-lo para bancar despesas necessárias, logo decidem gastá-lo com suas próprias prioridades — nunca com as prioridades do cidadão.
É nessa rubrica que entra o aumento do Fundo Eleitoral (uma despesa que, num país que merecesse ser levado a sério, não deveria ser bancada com dinheiro do povo).
É como chamar o cidadão de idiota
Os R$ 3,8 bilhões aprovado pela Comissão representam um valor R$ 2 bilhões superior ao que foi destinado às campanhas federais e estaduais do ano passado. É, também, quase o dobro daquilo que o governo já havia destinado para essa finalidade na proposta de Lei Orçamentária enviada ao Congresso para valer em 2020.
No documento, o governo pretendia destinar R$ 2 bilhões para as campanhas — valor que, convenhamos, já era um absurdo.
A explicação para toda essa generosidade dada pelo astuto deputado Domingos Neto (PSD-CE), que foi o relator da matéria na Comissão Mista de Orçamento é um daqueles raciocínios que parecem que ter como único objetivo tratar como idiota o cidadão que paga impostos.
Segundo Neto, o dinheiro que será usado para pagar as gráficas, contratar os cabos eleitorais, comprar cafezinho para os comitês, organizar comícios e bancar outras despesas de campanha, não sairá “de canto nenhum” — ou seja, nenhuma área da administração pública será prejudicada pela medida.
Calma! Sua Excelência não quis dizer que o dinheiro que bancará as campanhas simplesmente aparecerá num estalar de dedos — como se um gênio saísse de uma lâmpada e atendesse o desejo dos candidatos que disputarão cargos de prefeitos e vereadores. Não foi isso que ele quis dizer, mas foi quase.
Pelo raciocínio de Domingos Neto, os R$ 2 bilhões que o governo tinha prometido para as campanhas já estavam no orçamento e lá permaneceram.
O R$ 1,8 bilhão que completa a bolada foi parar na proposta porque o governo, em sua proposta orçamentária, subestimou os lucros que empresas como Petrobras e Banco do Brasil destinarão aos cofres públicos.
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Ninguém sabe quanto essas empresas lucrarão. Ninguém sabe o valor dos dividendos
que poderão destinar a seus acionistas sem que isso comprometa seus programas de investimentos.
Mas Domingos Neto já quer destinar parte da bolada para eleger prefeitos e deputados pelo país afora. Em tempo: ainda bem que o anúncio de crescimento do PIB saiu quando já não era mais possível para os senhores parlamentares tomá-lo como base para abocanhar um naco ainda maior do dinheiro do povo.
Num país onde os agentes do Estado definem os critérios para o gasto do dinheiro público a partir de seus próprios interesses, e não dos interesses do cidadão, chega a ser um milagre que a economia tenha crescido 1% em nove meses.
Em economia, ao contrário do que parece pensar Domingos Neto e os partidos políticos que apoiam sua proposta, não existe milagre.
O PIB, para crescer, precisa ser estimulado por pelo menos um de três fatores: o investimento do setor privado, o investimento do setor público e o aumento das exportações. No caso do Brasil, apenas uma dessas três condições garantiu o crescimento em 2019 e deverá continuar sendo o motor do crescimento em 2020.
Segunda divisão
Vamos aos fatos. Se dependesse do estímulo da balança comercial , o PIB teria recuado ao invés de crescer o 1% registrado entre janeiro e setembro.
Embora superavitário, o saldo das exportações brasileiras em relação às importações, entre janeiro e novembro de 2019, ficou mais de R$ 10 bilhões abaixo do valor obtido nos mesmos 11 meses de 2018.
A queda se justifica. O desastre causado pela Vale na mina de Córrego do Feijão, em Brumadinho, jogou abaixo as exportações brasileiras de minério de ferro , que sempre foram fundamentais para a composição do saldo positivo.
Não foi do comércio exterior, portanto, que veio o estímulo ao crescimento da economia. O estímulo também não veio do setor público .
É de conhecimento geral — e nem o governo nega isso —que o orçamento da União para 2019 mal deu para cobrir as despesas correntes e que o governo, devidamente autorizado pelo Congresso Nacional em junho, precisou levantar empréstimos para pagar os salários dos servidores, quitar a conta de luz e comprar papel higiênico para as repartições públicas.
Com a arrecadação comprimida pelo desempenho sofrível da economia, não sobrou um tostão para o governo e seus agentes investirem em rodovias, portos, hidrelétricas, aeroportos, saneamento e em outros equipamentos públicos que, em alguns momentos específicos da história, foram um motor importante do crescimento.
Sendo assim, se PIB não cresceu por causa do comércio exterior nem dos investimentos do setor público, o investimento do setor privado — nacional e estrangeiro — foi, por exclusão, a única mola que impulsionou o PIB para a frente.
Independente dos motivos que levam o setor privado a investir, o fato é que é daí que o país está tirando forças para se recuperar. Ver parte do resultado desse esforço se transformar em dinheiro para bancar campanhas eleitorais sem que a sociedade seja consultada a esse respeito é frustrante.
A proposta ainda não é definitiva . Será levada ao plenário no dia 17 de dezembro — mas a chance de que ela venha a ser rejeitada pelos deputados e senadores é a mesma de um clube que passou o campeonato inteiro jogando um futebol medíocre ser salvo da degola na última rodada da disputa. Pode até acontecer, mas só se for por milagre.