Amanhã (1/3/24) completa 30 anos de um dos passos mais engenhosos no combate à hiperinflação brasileira dentre um conjunto de medidas que ficou conhecido como Plano Real. Foi em um mesmo primeiro de março que entrou em vigor a Unidade real de valor (URV) e o país nunca mais seria o mesmo. A sua concepção começa mais de uma década antes, quando André Lara Resende e Pérsio Arida desenham o mecanismo. Levou tempo e muitos planos de estabilização fracassados para que a nossa política econômica abraçasse uma iniciativa ousada: se parte do problema da inflação era a indexação de preços e salários, o mais natural era combater a indexação. Com a URV, o caminho foi diferente: indexação total! Vamos compreender como isso funciona.
Em sala de aula, eu gosto de dar o exemplo com três setores (A, B e C). Imagine que os setores reajustem preços em momentos diferentes do tempo. Primeiro, os empresários do setor A alteram os seus preços, digamos, em 10%. Passado um tempo, é a vez das firmas do setor B. Só que quando chega a vez delas, a vida está mais cara do que no momento em que houve reajuste no setor A. Assim, vamos assumir que no setor B o reajuste foi de 15%. Quando chega a vez do setor C, o problema permanece. Demorou ainda mais e agora o ajuste das empresas nesse setor tem que considerar que não só faz tempo que os preços não sobem, como tanto as empresas do setor A quanto do setor B já tiveram a sua chance. Essa combinação leva ao setor C a querer um reajuste de, por exemplo, 20%. O que acontece a partir daí?
Podemos perceber que as empresas do setor A estão com preços (relativos) defasados em relação aos demais setores. Ao “correrem” atrás, elas aumentam ainda mais que as outras, e já dá para perceber o que vem pela frente. Esse desencontro de reajustes faz com que alguém sempre tenha incentivo de aumentar preços (em um ambiente de inflação alta) e a economia sai do controle.
Mas e se algo criasse o incentivo para que, voluntariamente, as empresas deixassem de reajustar os preços? Seria genial, não é mesmo? Sim, e foi. Entra a URV.
Em 1/3/94, o governo cria algo que cumpre duas das três funções da moeda: ser unidade de conta e reserva de valor. Todos os preços poderiam ser cotados em URV, assim como o patrimônio no mercado financeiro. A adesão para as empresas foi em grande parte voluntária (alguns contratos novos já tinham que ser feitos em URV), mas fazia todo sentido para elas aderirem voluntariamente. Por quê? Porque a URV era atualizada todo o dia. Então, se a inflação corroía o poder de compra da moeda diariamente, melhor do que ter que reajustar preços e contratos para recompor as perdas, era colocar os preços em URV, os contratos em URV, cujos valores eram atualizados diariamente pelo governo, e só no momento de realizar as trocas (financeiras ou comercias) era preciso verificar quantos cruzados reais eram equivalentes a uma URV. Muito menos trabalho, portanto. As empresas gostam disso.
Mas e aquela lógica dos nossos três setores, como fica? Vejamos.
O setor A colocou o preço em 10 URVs, por exemplo. Quando chegou o momento de reajustar, as empresas perceberam que 10 URVs tiveram o seu poder de compra mantido em relação ao passado (porque a URV foi atualizada) e, portanto, não precisam alterar o preço. O governo já fez o reajuste por elas. A mesma coisa acontece com o setor B: depois que colocou os preços em URV, não precisou mudar mais. O mesmo para o setor C. Ou seja, ao indexar totalmente a economia à essa unidade real de valor, o incentivo para que o reajuste de preços ocorresse de maneira inercial, sumiu! Claro, oferta e demanda ainda continuam atuando em cada um dos setores e alterando os preços relativos, mas aí são as condições de mercado que mudam os preços, não o hábito de “correr atrás” da inflação.
As trocas ainda ocorriam na moeda corrente (o Cruzeiro Real, CR$) mas preços e reserva de valor eram feitos em URV. Em pouco tempo, o país se acostumou com a URV. Quando isso aconteceu, no dia 1/julho/94, a URV “se transformou” no Real, que nos acompanha até hoje.
Amanhã, comemoramos o aniversário de um dos passos mais importantes para acabar com a hiperinflação. Parabéns para a URV, parabéns para o Brasil!