A crise econômica decorrente da pandemia da Covid-19 desorganizou a economia doméstica e internacional. Os choques decorrentes da guerra na Ucrânia intensificaram as dificuldades produtivas e o mundo desenvolvido se viu imerso em um ambiente de inflação alta. O que fez com que a taxa de inflação aumentasse? No termo técnico, uma combinação de dois tipos de perturbações: choques na demanda e choques de oferta.
Os do primeiro tipo dizem respeito ao impulso que começa nos gastos (seja no consumo das famílias, no investimento agregado, nos gastos do governo e/ou nas exportações líquidas) e é transmitido para a economia como um todo. A produção responde a esse movimento da demanda aumentando a quantidade, os preços ou os dois, a depender da situação econômica. Inflação e crescimento do PIB andam na mesma direção, portanto.
Já o segundo tipo de choque tem origem nas decisões de produção. Aumentos de custos, por exemplo, podem tanto desestimular a quantidade oferecida pelas empresas, quanto criar incentivos para que as mesmas aumentem os preços. Impulso semelhante ocorre quando há “desancoragem” das expectativas de inflação. Ou seja, crescimento do PIB e taxa de inflação andam em direções opostas. E aí surge o dilema: qual priorizar?
Em trabalho recente de Carlos Madeira, João Madeira e Paulo Santos Monteiro, sintetizado no texto “The origins of monetary policy disagreement: The role of supply and demand shocks” ("As origens do desacordo em matéria de política monetária: o papel dos choques de oferta e procura", em tradução livre), os autores mostram que choques de oferta geram mais discordância sobre como deveria ser a condução da política monetária do que quando as perturbações vêm pelo lado da demanda. Mas quem são os agentes em desacordo? Aqueles que, justamente, compõem comitês responsáveis pelas decisões de política monetária como, por exemplo, o Copom.
Certo, mas qual é a origem da discordância? A priorização. Se um choque retrair a oferta e isso ocasionar a queda da atividade econômica com aumento de preços, o que o Banco Central deve fazer? Alguém mais preocupado com a o PIB, a produção industrial, as vendas no varejo e o desemprego, por exemplo, recomendaria cortar a taxa de juros para que ela estivesse suficiente estimulativa (frente à taxa de juros natural, tema abordado neste texto ) e acomodasse a atividade econômica mais fraca. Todavia, aqueles mais preocupados com a estabilidade de preços defenderiam opções diametralmente opostas: o aumento da taxa de juros.
E porque isso é importante?
Os autores mostram que a discórdia surge em entidades monetárias que possuem mandatoduplo. Na lei complementar 179 de 2021, que dispõe sobre a autonomia do Banco Central do Brasil, foi definido o objetivo de “suavizar as flutuações do nível de atividade econômica e fomentar o pleno emprego”. Entre outras palavras, embora ainda exista um objetivo principal de estabilidade de preços, foi introduzido um objetivo secundário referente à atividade econômica.
Não é frequente haver dissidências sobre as direções das alterações nas taxas de juros, nas decisões do Copom. Geralmente, é sobre a intensidade dos cortes (ou aumentos). Algumas vezes sobre manter a taxa inalterada ou iniciar o ciclo (de queda ou de alta dos juros). Alguém lembra quando parte do Copom sugeriu alta de juros e a outra parte recomendou a queda?
A definição de mandatos fixos para os diretores e para o presidente do Banco Central faz com que possa haver uma composição do Copom mais heterogênea no futuro. E isso torna ainda mais relevante a identificação da natureza predominante do choque. Integrantes com preferências distintas podem vir a divergir na presença de novos choques de oferta. E o ambiente internacional ainda deve proporcionar vários nos próximos anos.