Ivan Ribeiro

A banalidade do mal

Por que tanta maldade no mundo?

Foto: Reprodução/Flipar
Por que tanta maldade no mundo?


A maldade está crescendo no mundo . Tomemos o recente conflito envolvendo o Hamas. Muita coisa tem sido escrita de lado a lado, justificando a violência bruta contra civis, os estupros e assassinatos. A forma como  Israel lida com os  palestinos teria causado essa chacina, perpetrada pelo Hamas . Retribuição da crueldade, seria isso?

Os regimes políticos autoritários e totalitários não existem porque são manipulados por pessoas demoníacas. Existe a maldade, faz parte da humanidade. Esse conceito foi desenvolvido por Hannah Arendt em “Eichmann em Jerusalém” - onde ela o chama de “banalidade do mal”. 

“Eichmann em Jerusalém” é um clássico, que me ensinou que o mal não precisa de demônios. Bastam seres humanos. Sua capacidade de enxergar a humanidade além das miragens é fascinante.

Eichmann foi capturado na Argentina em 1960, por um comando do Mossad e levado a Israel, onde o nazista protagonizaria o maior julgamento de crimes de guerra pós Nuremberg.

A operação foi cheia de riscos e perigos, num território hostil, a feita para capturar um ideólogo do nazismo, o arquiteto da 'solução final'.

Mas quem se apresentou ao Tribunal foi um burocrata comum, um pequeno burguês, arrivista. Eichmann era incapaz de reconhecer seu papel no Holocausto Judeu. Insistia que “apenas cumpria ordens” e que aplicava regras de logística no seu trabalho. Sobre ter sido o arquiteto da “solução final” que levou a 20 milhões de mortos, nada de culpa. Afinal nada tinha de pessoal contra os judeus, era até simpático a alguns deles. Apenas recebeu ordens e as cumpriu.

Arendt foi escalada para assistir ao julgamento, como jornalista, pela revista The New Yorker . Ela pode ver aquele homem afirmar repetidas vezes que era inocente, pois só cumpria ordens. Acompanhou detalhes da colaboração entre o réu e os investigadores. Ali estava o tenente coronel das SS, que fora chefe da divisão de assuntos Judeus da Gestapo, revelando ser um homem sem virtudes, mas não era, em absoluto, um sanguinário.

Mas ela foi muito além disso, ela viu que o genocídio e o próprio nazismo não são obras de seres demoníacos, obcecados ou perversos, mas de gente comum, que não refletia sobre suas ações e consequências. Uma multidão amorfa e sem pensamento próprio, que aceitava passivamente as informações dadas pela mídia controlada pelo partido Nazi (foi a base social do nazismo). Segundo ela, os planos de Hitler só foram possíveis pela passividade da sociedade alemã (inclusive judeus), que a exemplo de Eichmann, seguia o líder sem questionar.

Suas ideias tocaram profundamente as sociedades da época. Muitos questionavam a adesão popular ao nazismo, a sua aceitação e colaboração do povo alemão.

E mais impressionante: porque muitas lideranças judaicas haviam tentado ser aceitas pelo Nacional – socialismo, chegando a colaborar com as deportações. Como os nazistas enganaram tanta gente? Perguntas certamente incomodas.

Ela olha nos olhos desse "palhaço” e vê o escuro da alma humana. Eichmann é esse personagem: sem capacidade de refletir criticamente sobre seus atos e sem ideologia moral, cumpriu seus papeis sem o menor constrangimento. Arendt viu a alma humana. Com seu ferramental teórico, explica como se conseguiu fazer isso a partir de dois vetores:

1. O primeiro deles é sempre terem uma explicação total sobre a História, em termos de passado, presente e futuro. Seja ela racista, hitlerista ou a marxista/stalinista, orientam-se pelo "devir", pelo "movimento", não analisam o passado segundo um conjunto de postulados razoáveis, mas de uma ideia de futuro.

2.  O segundo é a doutrinação do pensamento, nas escolas (nazi e soviéticas) e pela propaganda. As ideologias têm a capacidade de "emancipar" as pessoas da realidade em que vivem.

Tá de brincadeira! Como assim fazer as pessoas verem algo diferente da realidade? Se você acha que as massas não são manipuláveis veja “A Onda”, filme alemão de 2008, dirigido por Dennis Gansel.


Mas o que tudo isso tem com o conflito em Gaza ? Relembrando a história mais recente, até 1930 a migração de Judeus para a palestina, através da compra de terras, era aceita e 170 mil pessoas já viviam em Telavive e Haifa. Nesse momento, os xeiques árabes começaram a se opor a migração. Suas razões? Insatisfação com as culturas democráticas dos judeus europeus, que contrastava com o regime Monarco - tribal vigente até hoje. Os ingleses, senhores da região, apoiaram os xeiques limitando a imigração e a compra de terras. Acontecem os primeiros atentados contra os Judeus, que criam a Haganá, força de autodefesa clandestina.

Com a segunda guerra, tudo é chacoalhado pelo Nazismo, que se aproxima dos árabes para tentar obter petróleo. Nesse início, os ingleses e os judeus se aliaram contra árabes, alemães e italianos.

Com o final da guerra, os poucos sobreviventes dos campos de concentração, sem nada além da roupa do corpo e suas almas começaram a migrar para Israel, no que tiveram que enfrentar os soldados ingleses. Falido depois da guerra, a Inglaterra não conseguiu uma solução, repassando o assunto para a ONU, recém-criada. O conselho de segurança da ONU, em 1947, propõe a constituição de dois estados na Palestina, um judeu e outro árabe-palestino. Israel declara sua independência nesse ao e os árabes movem uma guerra contra Israel, que sai vencedora.

Tenho grande simpatia por Israel, e também pelos libaneses. No  Brasil é muito difícil achar alguém que não tenha seus vínculos com os dois países.

Em meio a uma guerra das narrativas, salta a frase do secretário-geral da Liga Árabe, o egípcio Abdul Rahman Hassan Azzam, mais conhecido apenas como Azzam Pasha, em 1947:

“O mundo árabe não está disposto a fazer qualquer compromisso. Sua proposta [...] pode parecer razoável e lógica externamente, mas o destino dos povos não é decidido pela lógica e razão. Os povos não fazem concessões; eles lutam [...]. Vamos tentar vencê-los. Não tenho certeza se teremos sucesso, mas tentaremos. Conseguimos combater os cruzados – por outro lado, perdemos a Espanha e a Pérsia. Talvez possamos perder a Palestina, mas definitivamente é tarde demais para falar sobre soluções pacíficas”.

Essa frase revela uma compreensão milenar do que é a humanidade. Como explica M. HARARI, no majestoso Sapiens, o homo Sapiens é a espécie mais agressiva e destrutiva que se viu na Terra e sua principal arma é a imaginação coletiva (IC), a capacidade de todos se mobilizarem por algo imaterial.

Operando no terreno da IC, fica mais simples e direto compreender o conflito. Como se depreende da fala de Azzan Pasha, é uma guerra de civilizações, Oriente e Ocidente.

Você lembra das lutas de homo sapiens e neandertais em "2001 - Uma Odisseia no Espaço", de Stanley Kubrick? Aqueles somos nós. Ser mal é mais que nossa natureza, é nossa qualidade. Somos assim, não há o que se desculpar. E a  guerra em Gaza vai terminar quando um dos lados ganhar, arrasando o outro.