Desde o começo da pandemia de covid-19, troquei meu plano de saúde – o mais caro – pelo SUS. Vou relatando minhas experiências, imaginando colaborar com a melhoria do SUS.
Se eu soubesse, tinha levado uma matula com frango e farofa, café e pão de queijo. Fome, muita fome. Apresentei-me às 8h55 no balcão do segundo andar da AME Sudeste, uma clínica do SUS, operacionalizada por uma Organização Social (OS), aqui a SPDM, uma ONG criada para apoiar a então Escola Paulista de Medicina, atual Unifesp. As OS, nos anos 90, passaram a assumir a função de gestão terceirizada de equipamentos de saúde do SUS.
Sendo privadas, podem contratar pessoas (médicos, enfermeiros, atendentes), compram equipamentos (ultrassom, Tomógrafos, ressonâncias) e baldes de tinta branca.
Funciona? Sim, razoavelmente. Mas pode e precisa melhorar.
E o meu objetivo é fazer uma crítica justa, que permita melhorar o serviço prestado. E vamos ao atendimento.
Chegamos lá com uma guia de encaminhamento da UBS (unidade básica de saúde) para neurologia. Atrás dos atendentes, uma faixa informava que dia 29 é o dia do AVC. Achei estranho comemorar o AVC e não a prevenção ao AVC. Pensei em comentar com os funcionários, mas não havia ninguém identificado como gerente ou supervisor.
Na parede ao lado estava a frase: atendimento gratuito, 100% SUS, também espalhada por todos os corredores. Ela não é exatamente verdadeira. O SUS é custeado pelos impostos, pagos principalmente pelos seus usuários. Não é grátis, é até bem caro, ao redor de R$ 290 bilhões em 2019. Existe muita controvérsia sobre esses valores. Aqui estou citando Jamil Chade .
E o próprio Ministério da Saúde diz não conseguir acompanhar os gastos de forma eficiente.
O SUS é o plano de saúde de todos os brasileiros, e foi ele que nos salvou durante a pandemia. Mas, no dia a dia, a universidade pública, que é a base do SUS, tem muito a aprender daquilo que ensina: respeito pelo usuário, que é antes de tudo um cidadão.
A unidade AME sudeste é relativamente nova (2016), e planejada para ser uma clínica de especialidades médicas e ocupacionais, voltada para os idosos. Tem um site razoável .
Há uma entrada para que os automóveis possam deixar os usuários sem riscos de atropelamento. Mas a guarita é tão grande que automóveis têm dificuldade de manobrar. E a guarita nem sequer é utilizada.
Não há sinalização de piso para cegos. Há rampas no piso térreo, com corrimão, mas não nas laterais das salas. Os elevadores não têm o botão PCD, que altera o funcionamento das portas automáticas, retardando seu fechamento, essencial no caso dos idosos. Há uma boa oferta de cadeiras de rodas. Os corredores para os consultórios são estreitos e não tem ventilação. E são lotados de cadeiras fixas, que dificultam a circulação de pessoas. E das cadeiras de rodas que existem em abundância nessa AME. Simplesmente nada foi feito para facilitar a vida dos cadeirantes. Não há áreas demarcadas para eles.
A consulta estava marcada para 9h30. Às10h, a atendente passa dizendo que a médica não veio. Vamos ao andar térreo para fazer um novo agendamento. Passados 30 minutos, a atendente passa novamente, agora dizendo que a doutora havia chegado. E atenderia a quem esperasse. Optamos por ficar. Ao meio-dia, a fome nos perturbava, mas não há sequer um modesto pipoqueiro, um simples carrinho de milho verde ou mesmo uma banquinha de café e pão de queijo. Ver aquelas pessoas com mais de 60 anos reclamando de fome me causa reações distintas. Extrema solidariedade às vítimas da fome e profundo asco pelos gestores dessa arapuca.
Conversava com uma mulher de 76 anos ao meu lado. Ela disse que nunca reclama, pois se fizer isso perderia esse atendimento. Não acredito que isso ocorra, mas me pareceu que outras pessoas ali pensam assim também.
Ela estava tentando informações sobre onde comprar alimentos, mas teve da recepcionista a mesma resposta que todos: não há lanchonete nesta AMA. Se quiser e for corajoso, atravesse a rua e vá no supermercado em frente, num dos cruzamentos mais movimentados da cidade. Ele preferiu continuar a passar fome.
Prescrita a fome e com o tempo já perdido, o estresse se materializava. As consultas com a neurologista se alongavam. Previstas para durar 10 minutos – um tempo muito curto –, os atendimentos estavam na casa dos 40 minutos. A recepção dessas salas não tem um painel com a ordem das senhas. Com medo de perder o lugar numa fila que desconhecem, os usuários ficam nos corredores (sem ventilação) de acesso aos consultórios.
Quando chegou a minha vez, entrei no pequeno consultório e encontrei a médica. Ela conduziu a consulta com as perguntas pertinentes e revelando que me encaminharia para um serviço especializado em meu quadro clinico.
Feito o encaminhamento e impressas a prescrições dos medicamentos, a serem retirados na farmácia de alto custo do SUS, a consulta estava encerrada. Nesse momento ela se levanta para entregar as prescrições e reparo que seu jaleco está com o logotipo de um hospital na zona oeste da cidade. Logo cheguei a duas possibilidades, ou ela estava vindo de um plantão, o que causou o atraso, ou iria para la após o atendimento na AME. E não deve ganhar uniforme do SUS.
Ao sair encontrei a recepcionista e lhe disse que considerava o atraso absurdo. Ela recomendou que eu procurasse o serviço de atendimento no térreo, “porque essa doutora faz isso todo dia” e registrasse a queixa. Como assim todo dia? Ela reiterou: "Todos os dias, e nós não podemos fazer nada!"
Entendi rapidamente que essa unidade não tem uma gestão eficiente. Falta o básico, o controle de entrada e saída dos funcionários, inclusive médicos. Com as novas tecnologias de reconhecimento facial, isto não deveria ser um problema. Mas a falta de gestão cotidiana, presente junto aos usuários, é uma falha muito grande. É preciso que a SPDM reveja seu sistema de gestão urgentemente, e adote uma crítica interna, um ouvidor para lidar com as reclamações. Não parece ser complicado ter café e bolachas ou fazer que os médicos cumpram os horários. Se não fazem, é porque não estão dando a atenção devida. Falta amor a AME idoso!