É preciso ter a paciência de um camelo que cruza o deserto para entender a cabeça do Congresso Nacional — que tem entre suas atribuições a de decidir como será gasto o dinheiro do povo.

Congresso se mostrou disposto a desafiar opinião pública e aprovar mudanças na Previdência para agradar ao governo
Fabio Pozzebom/Agência Brasil
Congresso se mostrou disposto a desafiar opinião pública e aprovar mudanças na Previdência para agradar ao governo

Fácil não é. Mas é extremamente necessário, sobretudo quando a realidade se impõe e uma emenda constitucional que os analistas de plantão sempre consideraram “impopular” foi  aprovado em primeiro turno na Câmara dos Deputados por 379 votos entre os 513 possíveis. Praticamente três quartos da casa, ao invés dos três quintos exigidos.

De duas, uma. Ou o projeto em questão, no caso, o da Reforma da Previdência , não era tão impopular como diziam os luminares da análise política ou quase três em cada quatro senhores deputados (73,9% do total, para ser mais exato) são suicidas.

Se mostraram dispostos a desafiar a opinião pública e aprovar uma mudança constitucional que tira direitos dos cidadãos para agradar ao governo. Por essa visão, os deputados foram contaminados pela sovinice do ministro da Economia Paulo Guedes e querem manter o dinheiro público no cofre a qualquer custo. 

Sem medo da impopularidade

O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, posou de estadista ao defender a Reforma da Previdência
Marcelo Camargo/ABr
O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, posou de estadista ao defender a Reforma da Previdência

A questão é complexa. Se a Reforma da Previdência é mesmo impopular, os deputados não estão nada preocupados com a própria imagem junto ao eleitor. No mesmo dia em que se arriscaram a aprovar a Reforma da Previdência, que deverá economizar 987,5 bilhões nos próximos dez anos (o valor foi reduzido em pelo menos R$ 60 bilhões para atender os interesses dos policiais e reduzir as exigência para as aposentadorias das mulheres ), os senhores parlamentares também propuseram elevação do chamado Fundo Eleitoral para R$ 3,7 bilhões.

Sim. Com o apoio declarado do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), o mesmo que posou de estadista ao defender a Reforma da Previdência, o deputado Cacá Leão (PP-BA) apresentou a proposta de elevação do financiamento das campanhas com dinheiro público — esse, sim, um projeto rejeitado por nove em cada dez eleitores.

Leão, um dos parlamentares que rugiram alto para dizer sim à Reforma da Previdência, explicou de forma singela que a elevação do Fundo Eleitoral não aumenta as despesas públicas.

O dinheiro que financiará as campanhas virá do remanejamento dos recursos destinados às emendas que os senhores parlamentares teriam direito de apresentar e o governo, a obrigação de pagar.  Por essa lógica, o dinheiro para essas emendas não é do povo, mas dos próprios deputados. Você concorda com isso?

É preciso pensar no que significam esses R$ 3,7 bilhões. Se os senhores parlamentares se contentarem em manter o valor do fundo para os próximos pleitos no mesmo limite que estão pedindo para 2020 (o que é tão improvável quando a passagem pelo buraco da agulha do camelo mencionado no início deste texto), isso representará um mínimo de R$ 18,5 bilhões destinados a campanhas políticas nas cinco eleições que haverá nos próximos dez anos — ou seja, o mesmo período que serviu de base para cálculo da economia gerada pela Reforma da Previdência.

É um dinheiro irrisório diante do volume economizado: menos de 2% do total economizado. Talvez por isso, o estadista Maia tenha dito que não considera o valor exagerado diante das necessidades de uma campanha que abrangerá todos os 5 570 municípios brasileiros.

Dinheiro do povo com benefício próprio

Deputados comemoram a aprovação do texto-base da Reforma da Previdência, que venceu com 379 votos favoráveis
Michel Jesus/Câmara dos Deputados - 10.7.19
Deputados comemoram a aprovação do texto-base da Reforma da Previdência, que venceu com 379 votos favoráveis

O maior equívoco de todos é o da lógica que orienta esse tipo de opinião. Como se vê pela opinião de Maia, ela é guiada pela necessidade de quem recebe o benefício e não pela disponibilidade do dinheiro para pagar a conta. É exatamente o mesmo raciocínio usados pelas categorias privilegiadas que lutam com todas as forças, desde que começou a se discutir a reforma da previdência, para preservar suas benesses.

Elas sempre se consideram mais merecedoras do que os outros brasileiros na hora de se apropriar do dinheiro do povo em seu próprio benefício. Se a preocupação é a reputação, seria recomendável que os parlamentares tivessem um pouco mais de cuidado antes de defender ideias como a do aumento do Fundo Eleitoral. Suas excelências, com certeza, teriam uma imagem muito mais positiva aos olhos do eleitorado se, ao invés de pleitear aumento, abrissem mão da verba.

É claro que isso não acontecerá e que Maia e seus comandados não desistirão de levar a ideia adiante. A impressão que fica, no entanto, é a de que os mesmos deputados que agiram como se demonstrassem coragem cívica ao mexer no vespeiro da previdência, buscaram uma recompensa pelo sacrifício a que expuseram. Só mesmo os analistas políticos de plantão na TV para acreditar nisso.

A reforma da Previdência já foi compreendida como uma necessidade pela maioria da população. Ao aprová-la os deputados, ao invés de assumir riscos, queriam era se apresentar ao eleitorado como salvadores das contas públicas. Ao aumentar o Fundo Eleitoral, jogaram todo esse esforço por terra. O tempo se encarregará de mostrar que essa percepção é verdadeira: 2022 está logo aí.

A Reforma da Previdência não é rejeitada pela maioria da população, como os analistas tentaram fazer as pessoas a acreditar. Quem a rejeita são as corporações barulhentas, que se consideram merecedoras regalias maiores do que as que já têm. Os integrantes dessas corporações, que reúnem a elite do funcionalismo público, têm empregos estáveis e bem remunerados. Com reforma ou sem reforma, têm e continuarão se aposentando em condições muito mais vantajosas do que as dos milhões de brasileiros que trabalham na parte privada da economia.

Essas corporações realmente vão às ruas e agitam suas bandeiras contra o governo Bolsonaro. Mas os deputados que votaram a favor da emenda constitucional podem dormir tranquilos: eles não perderam um voto por terem ficado do lado da reforma. A turma que protesta jamais votaria neles. Ela está muito bem representadas pelos 131 parlamentares que disseram não ao texto. Ou pelos três que nem deram as caras na hora de votar.

Girondinos e Jacobinos

Os parlamentares que votaram pela reforma agiram em benefício dos próprios mandatos e não há nada de errado nisso. Reconhecer que determinadas posições são assumidas na política com os olhos voltados para a preservação dos mandatos não significa uma crítica ao parlamento nem à importância do poder legislativo.

A luta pela manutenção dos pescoços e dos mandatos em seu devido lugar é mais do que legítima e faz parte do jogo democrático desde o distante ano de 1789, quando os girondinos, sentados à direita, e os jacobinos, sentados à esquerda, dividiam espaço na Assembleia Nacional, em Paris, no calor da Revolução Francesa.

O que não se pode é, diante dos aplausos devidos pela aprovação de uma medida que, embora insuficiente, pode ajudar a destravar a economia, fingir que o Congresso é perfeito e retrata com fidelidade a sociedade brasileira.

A verdade é que ele não é nem será a imagem do povo enquanto persistir a anomalia que fez o voto de um eleitor de Roraima valer 13 vezes mais do que o de um eleitor de São Paulo (veja, a propósito, o artigo A Composição Preconceituosa do Congresso, publicado anteriormente aqui ).

É preciso, de qualquer maneira, repensar a forma de composição do Congresso e adotar regras mais sérias para o funcionamento dos partidos políticos. Mantidas como estão, as normas atuais seguirão provocando confusão na cabeça do eleitor que, antes de qualquer outra coisa, quer ver a economia funcionar, o nível de emprego melhorar e a massa salarial se recompor.

É preciso mudar os critérios de representação e, também, as leis que regulamentam o funcionamento dos partidos. Enquanto isso não acontecer, continuarão sendo comuns no parlamento os casos de sapatos que não se ajustam aos pés de quem os calça, como se viu no episódio em que o PDT ameaçou expulsar a deputada Tabata Amaral de suas fileiras.

Recordar é viver

Tábata Amaral (PDT-SP) é
Luis Macedo/Câmara dos Deputados
Tábata Amaral (PDT-SP) é "sangue novo" na Câmara dos Deputados e seu voto favorável a Reforma chamou atenção

Apontada como uma das promessas positivas de renovação do parlamento brasileiro, Tabata tem uma biografia rica para seus 25 anos de idade. Filha de uma família humilde da periferia de São Paulo, conseguiu por seus próprios méritos estudar em uma das universidades mais respeitadas do mundo, Harvard.

Ali, se formou em Astrofísica e Ciência Política. De volta ao Brasil, abraçou a política e, na hora de escolher o partido pelo qual lançaria sua candidatura à Câmara dos Deputados, foi parar no PDT. Nada menos coerente com sua própria trajetória.

Ligada do movimento Acredito, Tabata fez parte do Renova BR, bancado por grandes empresários interessados em renovar a política brasileira. Deles recebeu o suporte político, jurídico e financeiro para suas pretensões. Teve 264.450 votos e foi a sexta mais bem votada em São Paulo.

Esperar que alguém que leve a política a sério, como parece ser o caso de Tabata, tenha vida tranquila num partido presidido pelo ex-deputado Carlos Lupi é o mesmo que imaginar alguém chegar de camisa verde e sair incólume do meio da torcida Gaviões da Fiel.

Recordar é viver: o presidente do PDT foi ministro do Trabalho de Dilma Rousseff até surgirem evidências de que desviava recursos por meio de convênios com ONGs responsáveis por cursos fajutos de capacitação a trabalhadores. Foi obrigado a deixar o posto.

Seja como for, o PDT tenta se reinventar sob a batuta do ex-governador do Ceará, Ciro Gomes. Candidato a presidente da República em 2018, ele se firmou como a eminência parda da sigla. Passou a se vender como uma agremiação da esquerda esclarecida, comprometido com a inclusão social, mas ao mesmo tempo preocupado com a seriedade da administração pública. Isso parece ter atraído a jovem cientista por Harvard.

Veio a reforma da previdência e a jovem se deu conta de que o partido era pequeno demais para pessoas que pensam como ela e os outros. E, assim, se viu na obrigação de escolher entre tudo o que aprendeu nos livros e nos cursos de formação que frequentou e a fidelidade a um partido defensor de privilégios, que sempre deixou um rastro de suspeitas por onde passou. Ficou claro que ela escolheu o partido errado. Ou, então, que o partido deu abrigo a quem não rezava por sua cartilha. Ambos, portanto, estão errados.

Seja como for, ainda vai demorar um tempo até a Reforma ser aprovada em caráter definitivo. Até lá, muita água vai rolar e muita coisa pode acontecer. Até a mudança de ideia por parte de deputados que hoje apoiam, mas amanhã podem estar do outro lado. Assim é o Congresso, uma cabeça que se guia por seus próprios interesses e é muito difícil de entender.

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