Samuel Moreira (PSDB) apresentou relatório para a reforma da Previdência na Câmara
Marcelo Camargo/Agência Brasil - 13.6.19
Samuel Moreira (PSDB) apresentou relatório para a reforma da Previdência na Câmara

Passada mais de uma semana da leitura do relatório do deputado Samuel Moreira (PSDB-SP) , que fixou o limite máximo da economia a ser feita nos gastos com a Previdência Social, já é possível tirar uma conclusão a respeito do texto: ele não é apenas ruim. É péssimo! Não porque elimina direitos — como vivem se queixando os defensores das regalias sustentadas pelo sistema de aposentadorias — mas justamente porque não toca nos privilégios das corporações mais poderosas. 

Na espinha dorsal defeituosa do sistema, não houve reforma alguma: o desequilíbrio permanecerá o mesmo de antes. Funcionários públicos continuarão se aposentando em condições privilegiadas em relação aos trabalhadores da iniciativa privada e dentro de cinco ou seis anos o país se dará conta de que toda essa movimentação feita no início de 2019 em torno da reforma da Previdência não produziu qualquer efeito prático. O monstrengo assinado por Moreira serviu apenas para acalmar por algum tempo uma fera que permanece tão viva e perigosa quanto antes. 

O relatório é mais voltado para o passado do que para o futuro. Toda e qualquer preocupação que o projeto original pudesse ter para com a busca de um sistema mais equilibrado para as próximas gerações foi jogada no lixo com a exclusão do regime de capitalização . O modelo proposto pela equipe do ministro da Economia Paulo Guedes levaria a um cenário onde, no futuro, a poupança acumulada por cada trabalhador ao longo da vida garantiria sua renda a partir da aposentadoria. Na visão de Moreira, que desafia os princípios mais elementares da evolução demográfica do Brasil, um número cada vez menor de trabalhadores da ativa terá que dar duro para pagar as aposentadorias de um número cada vez maior de aposentados. 

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O atraso do Jeca Tatu

Relatório ignora evolução do campo e trata trabalhadores rurais brasileiros como o Jeca Tatu, de Monteiro Lobato
Reprodução
Relatório ignora evolução do campo e trata trabalhadores rurais brasileiros como o Jeca Tatu, de Monteiro Lobato

Sob qualquer aspecto, o que se vê no texto de Samuel Moreira é uma tentativa de prolongar pelo maior tempo possível a situação que causou os desarranjos que o projeto original, que já não era essas maravilhas todas, pretendia resolver. Um dos casos gritantes foi a exclusão dos trabalhadores rurais das mudanças no sistema de aposentadorias. Antes mesmo que se iniciassem as discussões do relatório, já se falava de um “consenso” entre os parlamentares quanto à manutenção como está dessa modalidade que, se não é a causa principal, ajuda a manter o desequilíbrio problemas da Previdência. É um sistema frouxo e descontrolado, cujo desacerto se reflete no fato de, proporcionalmente, haver mais aposentados rurais do que a população do campo brasileiro. 

Nas últimas décadas, nenhum setor da economia brasileira experimentou um crescimento e uma modernização tão consistentes quanto o campo — que registra evoluções contínuas e praticamente ininterruptas há quase três décadas. E isso, naturalmente, refletiu nas condições de vida do trabalhador rural. O homem do campo que opera uma colheitadeira com comandos eletrônicos de dentro de uma cabine equipada com ar condicionado — como é a norma nas médias e grandes propriedades produtivas do país — não pode ser tratado como o Jeca Tatu mostrado por Monteiro Lobato no início do Século 20. 

As condições de vida no campo mudaram, mas as cabeças dos políticos continuam tão atrasadas quanto antes. Por trás de argumentos aparentemente nobres, que demonstrariam a preocupação de Suas Excelências com os menos favorecidos, esconde-se, na verdade, a tentativa de tirar o foco da discussão dos privilégios e das injustiças embutidos nas “aposentadorias especiais” das categorias mais privilegiadas.

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Contas obscuras

Destinar CSLL dos bancos para aposentadorias não é uma solução, mas a prova do desequilíbrio das constas da Previdência
Reprodução/Banco do Brasil
Destinar CSLL dos bancos para aposentadorias não é uma solução, mas a prova do desequilíbrio das constas da Previdência

Atenção! Ninguém está dizendo, aqui, que no campo não sobrevivam condições de vida que justifiquem um tratamento especial a determinados trabalhadores rurais. O que não se pode é enfiar todos no mesmo saco. Que se estude, então, o problema a fundo. Que se separe os trabalhadores rurais que precisam de assistência daqueles que vivem melhor do que qualquer trabalhador urbano. Que se inclua os que trabalham no lado avançado do campo no regime geral de previdência e se criem, para os demais, condições especiais de caixa e de legislação com recursos não da Previdência, mas do Tesouro Nacional.

Uma providência simples como essa daria mais clareza aos números e facilitaria o debate em torno das mudanças na Previdência. Mas, não! Ao invés de procurar esclarecer os pontos obscuros, separando aquilo que é dinheiro de aposentadoria dos recursos necessários para garantir a assistência social às pessoas que recebem aposentadoria sem nunca terem contribuído para o sistema, o relatório de Moreira fez exatamente o contrário. Tornou as contas ainda mais confusas ao buscar em outras fontes que não as contribuições dos trabalhadores da ativa o dinheiro para cobrir o rombo da Previdência.

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Arrecadação anabolizada

Do ponto de vista do equilíbrio orçamentário, o grande mal da proposta não é reduzir a economia que a reforma pode gerar em dez anos do R$ 1,237 trilhão incialmente proposto para R$ 853,4 bilhões — uma diferença superior a R$ 383 bilhões em relação ao projeto do governo. Seu aspecto mais pernicioso é admitir a insustentabilidade do sistema. Do dinheiro que Moreira foi buscar em outras fontes para não precisar mexer naquilo que é essencial, R$ 50 bilhões viriam do aumento da Contribuição Social sobre o lucro líquido dos bancos — um imposto que sempre foi apontado como uma das causas dos juros indecorosos que o sistema financeiro brasileiro cobra de quem precisa de dinheiro. Outros R$ 217 bilhões sairiam da transferência para a Previdência Social dos recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador administrados pelo BNDES. 

O problema não é mostrar quem perde e quem ganha nesse jogo contábil. A questão de fundo é que trazer recursos não previdenciários para dentro do sistema de aposentadorias nada mais é do que uma maneira de anabolizar a arrecadação e conferir legalidade ao desequilíbrio crônico das contas. Sim: buscar em outras fontes o dinheiro para pagar as aposentadorias nada mais é do que passar um recibo de que há um rombo indecoroso nas contas. E qual é a causa desse rombo? Ele começa e termina no regime de aposentadorias do funcionalismo público. Todo o resto não passa de perfumaria. 

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Lobby dos servidores

Nesse cenário, o argumento de que o texto apresentado por Moreira é fruto de uma “negociação” que definiu até que ponto era possível avançar com a reforma é mais do que falacioso. Ele não passa de uma tentativa de enganar a sociedade dizendo que os integrantes da casa presidida pelo deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ) estão minimamente preocupados com o equilíbrio das contas da Previdência. Suas Excelências, na verdade, esconderam por trás de terem feito a desculpa da “Reforma Possível” a falta de disposição de tomar uma medida que arranhe os privilégios das categorias mais barulhentas. 

Nesse cenário, a decisão de excluir do texto os servidores dos Estados e Municípios das mudanças propostas, tratada como uma jogada de mestre para obrigar os governadores e prefeitos a se mexer, nada mais é do que mais um movimento para deixar tudo como está. As chances que os funcionários estaduais e municipais serem trazidos de volta para o sistema é mais ou menos a mesma que salvar o urso Panda da extinção. É até possível, mas muito improvável.    

Analisados os efeitos das mudanças nas idades para aposentadoria e identificadas as armadilhas introduzidas na reforma da Previdência , pode-se dizer que o resultado final foi tão pífio que o destempero do ministro da Economia Paulo Guedes ao comentar o texto foi até brando e as críticas feitas por ele podem ser tomadas como elogios. Guedes foi acusado de falta de habilidade política ao afirmar que o relator da matéria “se rendeu ao lobby dos servidores”, que sempre foram os mais privilegiados, ao aliviar o peso já discreto que a mudança de regras teria sobre eles. O desajuste primário da Previdência brasileira, ou seja, o desequilíbrio indecente que os privilégios concedidos às categorias mais poderosas do funcionalismo público provocam no sistema, sequer foram tocados. E enquanto esse problema sobreviver, ninguém pode falar em reforma mas, no máximo, em gambiarra da previdência.

O conteúdo desta coluna não necessariamente representa a opinião editorial do iG 

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