O Direito nos mostra duas perspectivas que devem ser obedecidas na busca da solução de um conflito. Além de se verificar as condições da ação e a plausibilidade das alegações do autor, faz-se necessária a análise do procedimento por ele utilizado na obtenção do bem objeto da demanda. Nesse contexto, concluímos que, em que pese o sujeito ser titular de um determinado direito material, deve se utilizar das vias adequadas para requerê-lo.
É por essa razão que o credor, titular do direito de receber um valor ou coisa, não pode agir de qualquer forma na busca da obtenção de seu bem ou valor, expondo, eventualmente, o devedor a situações constrangedoras. De igual forma, além da cobrança ser ordeira e digna, deve ser certa e determinada, não sendo pedido nada além do que é efetivamente devido.
O Código de Defesa do Consumidor dá especial proteção ao consumidor devedor, estabelecendo uma série de mecanismos de defesa contra cobranças abusivas e indevidas, estabelecendo sanções diferenciadas ao fornecedor que infringir aos dispositivos legais. Disciplinando o tema de cobrança de dívidas, o art. 42 diz que:
Art. 42. Na cobrança de débitos, o consumidor inadimplente não será exposto a ridículo, nem será submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça.
Parágrafo único. O consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à repetição do indébito, por valor igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano justificável.
Da literalidade do artigo, poderíamos dar interpretação diversa daquela que efetivamente visou o legislador. O dispositivo diz que o consumidor não poderá ser exposto a “qualquer tipo de constrangimento”. Pois bem, neste caso, encontramos uma falha de técnica legislativa na utilização de uma expressão equívoca. Em verdade, qualquer tipo de cobrança, em sua gênese, gera certo grau de constrangimento para a pessoa que é cobrada; sendo impossível, desta feita, realizar uma cobrança sem a criação de certo grau de constrangimento (tanto para quem cobra, como para quem é cobrado).
Ser demandado judicialmente pode causar um constrangimento, o que os romanos já chamavam de steptus judicis . Por outro lado, o direito de ação é garantia constitucional do cidadão e constitui exercício regular de um direito reconhecido (art. 188, I do CC). Deste modo, o que o legislador objetivou vedar é a cobrança vexatória, indevida, mentirosa, ameaçadora, que venha a agredir a inviolabilidade da vida privada, honra e imagem do devedor (art. 5º, X da CF).
Quando falamos de cobrança de dívidas de consumidores, nos referimos à perfeita composição entre dois direitos fundamentais. De um lado, encontramos o legítimo direito à propriedade por parte do credor (art. 5º, XII da CF); e por outro, a defesa da honra, imagem e privacidade do devedor, como já exposto. O intuito é a composição de interesses na busca da preservação dos direitos humanos no devedor (art. 1º, III da CF).
Muito se discute nos bancos acadêmicos a existência de um direito absoluto, sendo quase unânime a ideia de que nenhum direito pode ser evocado indiscriminadamente, havendo sempre situações de mitigação de sua aplicação. Todavia, o direito ao tratamento digno se mostra como princípio presente em todas as relações jurídicas.
Não há no ordenamento jurídico situação alguma que referende o tratamento indigno. Por essa razão, de acordo com Cláudia Lima Marques, Herman Benjamin e Bruno Miragem, os valores como liberdade e dignidade do ser humano são superiores ao interesse econômico da cobrança:
“Valores como liberdade e dignidade do ser humano são superiores ao interesse econômico da cobrança – v. Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Pacto de San José da Costa Rica, de 1969, Dec. 678, de 6 de novembro de 1992, (Nota: No espírito desta Convenção, não deve haver prisão por dívida, bem como ao espírito do art. 42, de que qualquer coação ou constrangimento – do maior, que é a prisão, à suspensão do fornecimento do art. 22 do CDC – deve ser evitado). Súmula Vinculante 25 do STF”. (Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, 6ª edição, p. 1.164).
Ressalte-se que o ato do credor ameaçar o devedor de ingressar com ação judicial de cobrança de dívida não configura o ilícito trazido pelo art. 42 do CDC, até porque, a busca da tutela jurisdicional não pode ser vista como meio de coação. O que se proíbe, como já dito, é a cobrança vexatória, indevida, falsa, incorreta, enganosa ou ameaçadora. Inclusive, o CDC prevê que além de um ilícito consumerista, tal prática enseja sanção penal, conforme disposto no art. 71:
Você viu?
Art. 71. Utilizar, na cobrança de dívidas, de ameaça, coação, constrangimento físico ou moral, afirmações falsas incorretas ou enganosas ou de qualquer outro procedimento que exponha o consumidor, injustificadamente, a ridículo ou interfira com seu trabalho, descanso ou lazer.
Pena. Detenção de três meses a um ano e multa.
A abusividade da cobrança pode ser enquadrada como toda aquela que exponha o consumidor devedor ou seus familiares e pessoas próximas à risco em sua integridade biopsicológica. Nesse aspecto, se encaixa a prática recorrente de empresas que prestam serviço público de água e energia elétrica de ameaçar o corte do serviço caso o pagamento não seja efetuado. Sendo concretizada a ameaça, inequívoco é o constrangimento físico e moral causado ao consumidor. Nesse sentido, citamos os seguintes julgados:
Corte de energia elétrica – Débito discutido em Juízo – Prática abusiva. Cuida-se de tema exaustivamente debatido nos Tribunais, prevalecendo a orientação de que é abusiva, sob a ótica do Código de Defesa do Consumidor, a prática adotada pelas concessionárias de serviço público, inclusive de energia elétrica, consistente no corte de fornecimento dos serviços como meio de coagir o consumidor a pagar valores que se afirmam credoras (TJBA – 4ª Câmara Cível, - Ag. In. 4115-7/2003 – rel. Des. Paulo Furtado – j. 18.06.2003 – RDC 54.267).
Ação Cautelar Inominada – Impossibilidade de suspensão de fornecimento de energia elétrica por alegado inadimplemento do consumidor. É vedado ao prestador de serviços constranger, coagir ou ameaçar o consumidor a efetuar o pagamento de valor devido por conta do serviço prestado, nos termos do art. 42, “Caput”, do CDC. Preliminares rejeitadas e apelo improvido (TJRS – 14ª Cam. – Ap. Cível 70002529386 – rel. Des. Aymoré Roque Pottes de Mello – j. 13.09.2001).
O valor cobrado do consumidor deve ser efetivamente devido e certo, vedando-se qualquer tipo de afirmação falsa, incorreta ou enganosa. Aqui, o CDC buscou blindar o consumidor de ser induzido a erro quantos aos elementos apresentados em eventual ação de cobrança ou na própria cobrança. Eis os ensinamentos de Rizzatto Nunes:
Todavia, há que buscar identificar o propósito da lei. O que ela pretende é impedir que por qualquer artifício o consumidor seja iludido quanto aos elementos apresentados na ação de cobrança e também na prática da cobrança em si. Por isso, parece correto dizer que as expressões “afirmação falsa, “incorreta” e “enganosa” são tomadas como sinônimas” (Curso de Direito do Consumidor, 13ª edição, p. 643).
Também absolutamente proibida é a cobrança vexatória de dívida, ou seja, aquela que exponha o consumidor ao ridículo. O ato de cobrar não pode ser desarrazoado, injustificável, sem nenhuma conexão fática com a causa da cobrança; sendo realizada apenas com o fito de expor o devedor ao vexame como modo de coação ou vingança pessoal do credor. Nesse sentido, Rizzatto Nunes, em Curso de Direito do Consumidor , 13ª edição, p. 644, afirma:
“Está proibida, por exemplo, a remessa de correspondência aberta, fazendo cobrança; ou o envio de envelope com carta de cobrança, tendo-se colocado por fora do envelope em letras garrafais “cobrança”, ou tarja vermelha com o termo “cobrança” ou “devedor”. É ilegal, também, a colocação de lista na parede de escola ou sala de aula com o nome do aluno inadimplente”.
Muito se debateu quanto à legalidade do envio de cobrança ao local de trabalho do devedor, sendo pacificado o entendimento de que não há impedimento em seu envio por correspondência lacrada, tampouco via contato telefônico, desde que a ação de cobrar não chegue ao conhecimento de terceiros. Desta feita, a comunicação por correspondência ou telefônica deve ser realizada diretamente com o consumidor, sendo terminantemente vedada a cobrança por recado de superior hierárquico ou colega de trabalho.
Consumidor – Ação Indenizatória – Dano moral – Cobrança de prestação quitada com atraso no local de trabalho da vítima, comunicando o fato ao porteiro do edifício, à vista de outros empregados – Conduta que expõe o consumidor a constrangimento e vexame (...). A cobrança de prestação quitada, no local de trabalho da parte, informada ao porteiro, à vista de outros empregados, como a ascensorista, é motivo de vexame e dano moral (...) . (TJRS – 9ª Câmara Cível. – Ap. Cível. 599298254 – rel. Des. Rejane Maria Dias de Castro Bins – j. 09.06.1999).
Caso o consumidor se depare com cobranças como as supramencionadas, terá direito à repetição do indébito, nos termos do art. 42, parágrafo único do CDC. A devolução do dobro do valor pago indevidamente, acrescido de correção monetária e juros legais se dará apenas caso o consumidor tenha efetuado o pagamento ou parte dele. Porém, havendo a cobrança indevida sem o consumidor ter pago parte do valor, suportando despesas com custas judiciais e honorários advocatícios, remanesce o direito de pleitear indenização por danos materiais e morais (art. 5º, X da CF c.c art. 6º, VI do CDC).
Por fim, devemos nos atentar que a exceção trazida pela parte final do parágrafo único do art. 42, “ salvo hipótese de engano justificável ”, exclui apenas o dever de reembolsar em dobro o valor pago, permanecendo o direito de o consumidor exigir que a quantia efetivamente paga seja devolvida acrescida de correção monetária e juros legais.