Sem reajuste desde 2015, a tabela do Imposto de Renda (IR) chegou à maior defasagem de sua série histórica: 148,10%. Atualmente, quem ganha mais de R$ 1.903,99 mensais está sujeito a prestar contas ao leão. Devido à alta da inflação e o reajuste do salário-mínimo de 2023, fixado em R$ 1.302, os trabalhadores de baixa renda, que ganham um salário e meio, estarão obrigados a declarar o IR. Especialistas ouvidos por O Dia alertam que o valor destinado ao pagamento do tributo pode fazer falta no orçamento familiar.
De acordo com levantamento feito pelos Analistas-Tributários da Receita Federal do Brasil, a distorção na tabela do Imposto de Renda "retirou, nos últimos 12 meses, mais de R$ 100 bilhões da renda dos trabalhadores". Na contramão deste cenário, que afeta a população mais pobre e a classe média no Brasil, os "mais ricos deixaram de pagar, neste mesmo período, mais de R$ 121 bilhões de IR devido a isenção de lucros e dividendos".
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"O Brasil é um dos países mais injustos do mundo no assunto de estrutura tributária. Tributa-se o consumo em demasia, impactando de maneira mais contundente os mais necessitados, e tributa-se de maneira errônea a renda", aponta o economista Rica Mello.
Com a falta da correção na tabela, os trabalhadores de baixa renda são as próximas vítimas do IR. Neste ano, são isentos das contribuições apenas aqueles com rendimento de até R$ 1.903,98. No entanto, os cidadãos que têm renda acima desse valor já são tributados a alíquota de 7,5%.
"Isso pode parecer pouco, mas a incidência do tributo, ainda que em valores baixos, como R$20 ou R$30, já pode impactar o orçamento de famílias de renda mais baixa, pois deixariam de poder gastar com alimentação ou outros gastos básicos", alerta o André Mendes Moreira, advogado tributarista e sócio do escritório Sacha Calmon e Misabel Derzi (SCMD).
Com o novo grupo sendo inserido e tendo a sua renda abocanhada pelo leão, o economista Rica Mello chama a atenção para a qualidade da alimentação das famílias brasileiras. "A renda líquida disponível destas famílias diminui, gerando um efeito devastador, dado à forte relevância da alocação de recursos das famílias mais pobres na compra de alimentos que acabam sofrendo pressão para baixo, reduzindo a quantidade e a qualidade da comida disponível à essas famílias", disse.
"Além disso, a falta de correção (...) perpetua o perfil injusto do imposto sobre a renda brasileira que acaba por pesar de maneira mais contundente na parcela mais pobre da população, ao invés de cobrar mais dos mais ricos a fim de corrigir parte da injustiça social que aflige o país", acrescenta Mello.
Um estudo realizado pela Associação Nacional dos Auditores da Receita Federal do Brasil (Unafisco), publicado em janeiro de 2023, aponta que 18 milhões de brasileiros se beneficiariam da isenção da cobrança do IR neste ano se a tabela fosse corrigida integralmente pela inflação desde 1996. Ficariam isentos todos com rendas tributáveis não superiores a R$ 4.723,77.
No documento da Unafisco, a correção a partir de 1996 foi calculada levando em conta a aplicação do Plano Real (1994), quando houve o congelamento da Tabela Progressiva do Imposto de Renda Pessoa Física (Tabela do IRPF) no período 1996 a 2001.
"Ao contrário do que vinha acontecendo até 1995, quando sofria ajustes periódicos, a Tabela do IRPF não foi reajustada entre 1996 e 2001. A partir de 1º de janeiro de 1996, os valores da tabela, antes expressos em Unidades Fiscais de Referência (UFIR), foram convertidos em reais", aponta a Unafisco.
Tabela para o IR deste ano
Valor do salário Alíquota do Imposto de Renda Parcela dedutível
Até R$1.903,98 Isento 0
De R$1.903,99 até R$2.826,65 7,5% 142,8
De R$2.826,66 até R$3.751,05 15% 354,8
De R$3.751,06 até R$4.664,68 22,5% 636,13
Acima de R$ 4.664,68 27,5% 869,36
Fonte: Unafisco
O grande problema é que os valores da tabela estão defasados, o que preocupa os trabalhadores. Outro fator que contribui para que pessoas de baixa renda ingressem na faixa de desconto do imposto é a inflação. De acordo com o cálculo feito pelo Sindicato dos Auditores-Fiscais da Receita Federal (Sindifisco Nacional), com base no Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), que encerrou 2022 acumulando 5,79%, a falta de correção da tabela tem gerado um aumento da tributação justamente sobre quem tem menor poder aquisitivo.
Na época em que a tabela passou pela última correção, quando foi estabelecido o valor para R$ 1.903,98, essa quantia representava cerca de 2,5 vezes o salário-mínimo, fixado em R$ 788 em 2015.
Segundo Mello, apesar dos aumentos anuais no salário-mínimo, o seu poder de compra caiu ao longo dos anos, "em especial para os mais pobres, dado o forte aumento em alguns segmentos muito relevantes a essa camada da população, como é o caso dos alimentos".
"Adicionalmente, por não haver correção da tabela de imposto de renda, parte desses aumentos de salário, concedidos para cobrir gastos maiores provenientes da alta dos preços, acaba sendo repassada ao governo, diminuindo a capacidade de compra dessas famílias", ressalta.
Promessas
A correção da tabela foi um compromisso assumido pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) ainda na campanha eleitoral de 2018. Ele terminou o seu mandato sem mexer na questão. Durante a campanha de 2022, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) também prometeu elevar para R$ 5 mil o limite de isenção.
"Eu tenho uma briga com os economistas do PT. Se a gente fizer isenção até R$ 5 mil, são 60% da arrecadação deste país. Então, vamos mudar a lógica, diminuir para o pobre eaumentar para o rico", disse Lula em discurso no Palácio do Planalto.
Se Lula busca colocar o "pobre no Orçamento", a equipe econômica sinaliza que essa parcela da população terá de esperar mais um pouco no caso do Imposto de Renda. Isto porque o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, já afirmou que não será possível fazer a correção ainda este ano. Ele alegou que precisaria cumprir o princípioda anterioridade que rege a tributação no país. De acordo com Haddad, tal medida, se implementada em 2023, só poderia ser efetivada em 2024.
Segundo Moreira, o argumento trazido pelo governo para não fazer a correção este ano é equivocado. "É pacífico na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que o princípio da anterioridade somente é limitação para os casos de aumento de impostos ou da carga tributária, como corolário da segurança jurídica e proteção da confiança dos contribuintes. Uma alteração que promovesse redução da carga tributária, portanto, não encontraria este óbice constitucional", afirmou.
Já para o economista Rica Mello, teoricamente o argumento está correto, quando o governo diz que é necessário cumprir o princípio da anterioridade ao promover mudanças nas faixas do Imposto de Renda. "Isso porque ele não poderia instituir no ano corrente a diminuição das faixas, porém o aumento das faixas pode sim ser implementado no mesmo ano em que ele é votado, por não trazer maior oneração para o contribuinte". Mas ele explica que a ação poderia trazer prejuízos as contas públicas:
"Tal atitude traria prejuízos ao erário público, piorando a situação debilitada do orçamento público de 2023, pois já é esperado um gasto de aproximadamente 200 bilhões de reais acima da arrecadação. Por este motivo, apesar de não ser mandatório ou até mesmo proibido, é justificável o argumento que a correção da tabela do imposto de renda discutida em 2023, só seja implementada a partir de 2024. Essa atitude, ainda que não desejável para a população, é importante para garantir a segurança jurídica e a previsibilidade nas obrigações financeiras do governo".
Douglas Silva, advogado especialista em direitos sociais, ressaltou que, no momento, quem está ganhando com a distorção entre tabela e reajustes é o governo. "O Estado ganha com a desatualização, pois mais pessoas são obrigadas a contribuir, aumentando a arrecadação. Quem perde, sem dúvidas, é o trabalhador com salários mais baixos, que passará a pagar um imposto que deveria ser isento", disse.
O Ministério da Fazenda foi procurado por O Dia para comentar as propostas de revisão da tabela do IR, mas respondeu apenas que "a Receita Federal só se manifesta sobre atos publicados".
Atualização gera perda de receita
A correção da defasagem total implicaria em uma renúncia fiscal de R$ 101,6 bilhões, segundo cálculos do Sindifisco Nacional. Para a entidade, a atualização deve ser acompanhada de medidas de compensação da perda, principalmente tributando os mais ricos, que possuem parcelas elevadas de rendimentos isentos.
O economista Rica Mello explica que em tese o governo poderia diminuir o tributo neste ano, pois a Lei de Responsabilidade Fiscal não impede a ampliação da faixa de isenção do Imposto de Renda. "O Artigo 14 da lei não considera como renúncia fiscal isenções de caráter geral, ou seja, que são concedidas a todos os contribuintes que se encontram em uma mesma situação, como seria o caso em um eventual aumento das faixas de isenção", disse.
"Entretanto há estudos que mostram que a ampliação das faixas de isenção do imposto de renda pode impactar as contas da União em centenas de bilhões de reais. Com o orçamento de 2023 aprovado — e com o rombo gigantesco nas contas públicas deste ano, que parecem estar próximas ao limite do que foi autorizado pelo legislativo na votação da PEC da transição —, uma eventual diminuição de arrecadação teria de ser necessariamente compensada por aumento de outras receitas do governo, o que parece não haver espaço nesse ano de 2023", acrescentou.
O Sindifisco Nacional afirma que nossa constituição defende o princípio da capacidade contributiva — preceito que estabelece que quem tem maior renda paga mais imposto. "A falta de correção da tabela é uma maneira de aumentar a tributação para os mais pobres. Para corrigir esse problema e não causar danos ao já deficitário orçamento, o ideal seria adotarmos medidas progressivas, como a volta da taxação de lucros e dividendos. Atualmente, temos empregados pagando mais imposto proporcionalmente que o dono da empresa, algo que aprofunda diretamente a desigualdade social", afirma Tiago Barbosa, vice-presidente da entidade sindical.
"Há diversas declarações dos representantes dos poderes Executivo e Legislativo de que pretendem tratar do tema este ano. Espera-se, como medidas corretivas, que sejam adotadas medidas no sentido de ampliar a faixa de não incidência do tributo, da criação de novas faixas acima da atual e com percentuais maiores, além da sempre discutida tributação sobre lucros e dividendos", diz o advogado tributarista André Mendes Moreira.
Projeto em tramitação
Atualmente, já existe um texto-base da reforma do Imposto de Renda, que promove uma série de alterações no tributo. Para as pessoas físicas, a principal mudança é a ampliação da faixa de isenção para trabalhadores celetistas que recebem até R$ 2,5 mil, o que corresponde a uma correção de 31% em relação ao limite atual (R$ 1,9 mil).
O projeto também prevê reajuste para as demais faixas do IR, mas em menor proporção (cerca de 13%). A proposta estabelece ainda alterações na cobrança de Imposto de Renda também para empresas e investimentos. O relator da matéria, deputado Celso Sabino (PSDB-PA), apresentou cinco versões do seu parecer. Na última. Ele previu um corte de sete pontos percentuais (de 15% para 8%) na alíquota do Imposto de Renda das empresas (IRPJ) e um corte de um ponto percentual na Contribuição Social sobre Lucro Líquido (CSLL), vinculado à redução de incentivos tributários destinados a setores específicos.
O texto aprovado na Câmara prevê a tributação de lucros e dividendos distribuídos pelas empresas como uma forma de compensar a redução dos demais impostos. Mas a proposta ainda precisa ser aprovada no Senado e sancionada pelo presidente da República para entrar em vigor.
Reajuste do IR
Faixas Alíquotas Como é Comos seria
- Faixa 1 Isento R$ 1.903,98 R$ 2.500
- Faixa 2 7,5% R$ 1.903,99 R$ 2.500,01
- Faixa 3 15% R$ 2.826,66 R$ 3.200,01
- Faixa 4 22,5% R$ 3.751,06 R$ 4.250,01
- Faixa 5 27,5% Acima de R$ 4.664,68 Acima de R$ 5.300,01
As regras para a entrega da declaração do Imposto de Renda 2023 devem ser divulgadas pela Receita Federal no fim de fevereiro. O prazo de envio geralmente vai do começo de março a abril.