Um erro grosseiro e que pode resultar em perda de investimento europeu e estrangeiro de forma geral para o Brasil . É como especialistas em relações internacionais veem a declaração do ministro da Economia, Paulo Guedes, de que a Europa está se tornando “irrelevante” comercialmente para o país e que, se “não nos tratarem melhor, (...) vamos ligar o foda-se”.
O ministro fez as afirmações na última terça-feira (9), em evento do setor de bares e restaurantes. Houve comentários voltados diretamente à França, citando conversa com um ministro francês, comparando as queimadas na Amazônia com o incêndio na Catedral de Notre-Dame, em Paris.
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"É mais uma pedra no muro da intolerância e da incompetência em relações exteriores do atual governo", avalia José Niemeyer, coordenador da graduação em Relações Internacionais do Ibmec-RJ, citando sucessivas indelicadezas e incongruências na relação do Brasil com a França.
O site do jornal Le Figaro e a edição francesa do Huffpost, entre outros veículos de imprensa franceses, noticiaram as declarações de Guedes. A sinalização do ministro é entendida por especialistas como uma espécie de prepotência despida de estratégia.
"Adiante, o Brasil será um grande produtor de alimentos e energia globalmente. Isso é importante. Mas não garante autonomia ao país para escolher seus parceiros, para dispensar aliados tradicionais. Isso afeta, inclusive, nossa soberania, porque tem a ver com a manutenção de alianças", comenta Niemeyer.
Em sua fala, Guedes afirmou que a Europa vai perdendo relevância no comércio com o Brasil, citando que “hoje nós comercializamos comvocês US$ 7 bilhões e comercializamos com a China US$ 120 bilhões”.
A União Europeia (UE) é, contudo, o segundo maior mercado das exportações brasileiras. Dados do Ministério da Economia mostram que, de janeiro a julho deste ano, foram vendidos ao bloco europeu US$ 29,591 bilhões, enquanto a China, em primeiro lugar no ranking, comprou quase US$ 56 bilhões.
Nesse mesmo período, o Brasil teve um superávit de US$ 4,987 bilhões no comércio com a UE. As importações de bens daquela região somaram US$ 24,6 bilhões, com destaque para medicamentos, produtos industrializados, adubos e fertilizantes.
‘Descolada da realidade’
Já a França está em 26º lugar no ranking de mercados compradores de produtos brasileiros. Técnicos da área de comércio exterior do governo ressaltam, porém, que os números podem gerar distorções, uma vez que nem todos os itens que vão para o país entram por um porto francês.
Para Leonardo Paes, pesquisador do Núcleo de Prospecção e Inteligência Internacional da FGV, a fala de Guedes é “descolada da realidade”.
"Parece que a França está preocupada em perder o Brasil, mas é o contrário. A França poderia comprar mais do Brasil, e nós deveríamos estar preocupados com isso."
De janeiro a julho, o Brasil exportou US$ 1,8 bilhão para a França e importou US$ 2,8 bilhões daquele país, o que resulta em um déficit para o lado brasileiro de cerca de US$ 1 bilhão.
Os principais produtos embarcados ao mercado francês foram farelo de soja, celulose, minério de ferro e café. Entre os itens importados, motores e produtos químicos.
José Augusto de Castro, presidente da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB), pondera que ver a Europa como “irrelevante” é incompetência do Brasil:
"É culpa do Brasil, que só exporta commodities. Não temos preço para exportar manufaturados. Seria preciso reduzir o custo Brasil, e isso aumentaria a base de exportação. Em commodities, não temos controle sobre preço. Na manufatura, a competitividade traz valor agregado."
Maior empregador
A posição “não institucional” do governo Bolsonaro, como define Niemeyer, do Ibmec-RJ, bate também na captação de investimento estrangeiro direto ao país, recursos que geram emprego, renda e estruturação industrial.
Em 2020, segundo os dados mais recentes do Banco Central, a França foi o terceiro país em investimento estrangeiro direto no Brasil, com US$ 32,3 bilhões, atrás de EUA, com US$ 123,9 bilhões, e Espanha, com US$ 58,2 bilhões. A China figura em sexto, com US$ 22,6 bilhões.
As empresas francesas são ainda o maior empregador estrangeiro no Brasil, segundo informação publicada pelo site da Câmara de Comércio França-Brasil (CCFB), citando a rádio francesa RFI. Já o acordo de livre comércio entre o Mercosul e a UE, proposto em 2019, está parado.
Procurada, a Embaixada da França no Brasil não comentou. Guedes, para os especialistas, deve ficar sem uma resposta do governo francês.
"Os franceses devem ficar quietos. Estão olhando as eleições. Os dois países têm uma relação de muitos anos, não vale mexer nisso pela fala de um ministro no fechar das cortinas desse governo", diz Paes. "Se (Bolsonaro) ganhar, a França se reposicionaria, com postura mais fria e distante."
A Representação da União Europeia e a CCFB não responderam até o fechamento desta edição.