Os últimos meses não têm sido fáceis para o mercado de criptomoedas . Entre quedas históricas em ativos famosos como o bitcoin, o colapso de promessas como a TerraUSD e esquemas de fraude, o Congresso vem discutindo uma proposta de regulamentação que estabelece regras de funcionamento do mercado e de proteção dos clientes.
Para parte do mercado, quanto antes os deputados aprovarem esse projeto, melhor. Julien Dutra, diretor de Relações Governamentais do Mercado Bitcoin, ressalta que o ideal seria que a aprovação ocorresse ainda neste semestre , antes que o período eleitoral ocupe a agenda dos parlamentares. Se ficar para depois, poderia ser prejudicial.
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"Se não acontecer de aprovar isso agora e ficar só pro ano que vem ou para novembro, a gente pode causar cada vez mais algo temerário para o mercado em termos de risco sistêmico em competição, proteção ao consumidor e prevenção à lavagem de dinheiro", disse.
Na visão de Daniel Mangabeira, diretor de Relações Institucionais para América Latina da Binance, maior corretora de criptomoedas do mundo, a regulação do mercado é muito bem-vinda, mas não há uma avaliação sobre o tempo de aprovação do Congresso.
"Para a Binance seria importante ter regulação, a gente gostaria de ver uma indústria que tivesse mais condições de trazer segurança para as pessoas, para os investidores, para todas as transações relacionadas a cripto", apontou.
O texto original foi apresentado ainda em 2015 pelo deputado Áureo Ribeiro (Solidariedade), mas só foi aprovado na Câmara em dezembro do ano passado. Em abril deste ano, o Senado fez algumas modificações no texto, que voltou para nova deliberação pelos deputados.
Entre as principais propostas do texto aprovado pelo Senado, está a definição do que é um ativo virtual, obrigação de autorização para a empresa funcionar no Brasil e a previsão de que o governo deverá estabelecer quais ativos serão regulados ou não.
Segurança jurídica
Cecilia Choeri, especialista em proteção de dados e compliance, sócia de Chediak Advogados, destaca que o projeto não detalha as regras e prevê que o governo fará muito da regulação, mas vai em um “caminho bom” e traz segurança para o mercado e para os clientes.
"Os ativos virtuais vão ter que seguir governança, segurança da informação, proteção de dados, direito do consumidor, tudo isso tudo isso são diretrizes que a regulamentação posterior vai ter que observar", pontuou.
Um dos objetivos da regulamentação é proteger o consumidor das falhas do mercado, como o colapso da TerraUSD, que fez o mercado global de criptomoedas desabar em maio, além de fraudes.
O caso mais lembrado é o do “Faraó dos Bitcoins” preso pela Polícia Federal no ano passado em uma investigação sobre fraudes bilionárias envolvendo criptomoedas. Nesta semana, ainda houve o caso do “sheik das criptomoedas”, investigado por fraude.
O advogado Tiago Severo, sócio do escritório Caputo, Bastos e Serra e especialista em direito bancário, contribuiu para as discussões sobre o texto e aponta três pontos principais do projeto que contribuem para a segurança jurídica do setor.
O primeiro é a obrigação que a empresa que atue no Brasil tenha representação no país, inclusive com CNPJ, o segundo é a regra de transição de 180 dias até que as alterações da proposta entrem em vigor e a terceira é a segregação patrimonial entre o que é da corretora e o que é do cliente.
"O conceito de separação do patrimônio da corretora e do patrimônio do cliente é fundamental para que o cliente esteja protegido em uma situação de crise, não só em casos de fraude", apontou.
A regra de transição de 180 dias prevê que as empresas que já atuam neste mercado poderão continuar por esse período se tiverem cadastro no sistema do Coaf e CNPJ, ou seja, presença no Brasil.
Com a intenção de estabelecer regras mais claras, o projeto também inclui o mercado de criptomoedas na legislação sobre lavagem de dinheiro, com previsão de envio de informações ao Coaf e no Código Penal, prevendo penas de 2 a 6 anos e multa em casos de fraude.
Competição
Na discussão sobre os pontos do relatório, que será apresentado na próxima semana pelo deputado Expedito Netto (PSD-RO), há uma oposição em alguns pontos entre as empresas nacionais, que têm sede no Brasil, e as internacionais, que muitas vezes não têm representação no país.
Victor Gomes, diretor jurídico da Foxbit, ressalta que o mercado de criptoativos é mundial, então muitas empresas que atuam no Brasil não estão sediadas no país. Ele entende que tanto as “exchanges” de fora como as do Brasil devem seguir as regras brasileiras.
"Hoje o cenário atual tende a favorecer as empresas internacionais porque a gente tem uma regulação, que fala que todas as empresas brasileiras têm que reportar as transações para a Receita. A gente faz isso desde agosto de 2019 com o maior prazer, mas as empresas internacionais não têm essa obrigação. O mercado está buscando uma paridade, uma igualdade para que as empresas possam concorrer em forma de igualdade", disse.
Mangabeira, da Binance, afirma que a empresa tem mostrado seu comprometimento pelo mercado brasileiro e em robustecer a estrutura no país. Ele aponta que a empresa seguirá os critérios estabelecidos pela lei e destaca dois trechos na discussão atual que poderiam ser alterados.
O primeiro é a premissa de segregação dos ativos virtuais e do patrimônio. Segundo ele, a questão não é de mérito, mas alerta que a redação do texto pode trazer algumas dúvidas. Ele explica que esse tema poderia ser discutido pela autoridade que vai regular o tema posteriormente.
O segundo é a questão do tempo de adaptação. Mangabeira argumenta que a indústria é nova e a adaptação ao marco necessita de tempo e investimentos. O período de 6 meses é “legítimo”, mas as obrigações imediatas, como cadastro no sistema do Coaf, poderiam criar insegurança jurídica porque o próprio órgão precisaria de tempo para criar as estruturas necessárias.
"A nossa preocupação é: se o marco regulatório impuser obrigações imediatas a serem cumpridas que no limite a própria estrutura regulatória não vai possibilitar que a gente cumpra, vai criar insegurança jurídica, incerteza", aponta.
Bernardo Srur, diretor da Associação Brasileira de Criptoeconomia (ABCripto), ressalta que a regulação do mercado traz segurança jurídica e ajuda a atrair investimentos para o país.
"De fato vai ajudar no desenvolvimento do mercado e entrada de novos players, não só novos players de cripto de nível internacional que vão ali estabelecer suas bases e vão ter o mercado atrativo, mas também players no mercado tradicional que estão com seus investimentos parados", destacou.
Veja os principais pontos do projeto
Definição de ativos
Um dos pontos mais básicos do projeto é definir que um “ativo virtual” é uma representação digital de valor que pode ser negociada ou transferida por meios eletrônicos e pode ser utilizada para pagamentos ou investimentos.
A estratégia para conferir uma amplitude a definição para um mercado tão novo foi trabalhar por exclusão. Por exemplo, o texto diz que moeda nacional ou estrangeiro não é um ativo virtual, assim como não é um instrumento que dá acesso a produtos, serviços ou benefícios ou qualquer representação de ativos que já estejam previstos em lei.
Regulador
O projeto é visto como “principiológico” por especialistas por trazer as bases do funcionamento do mercado, mas deixar muita coisa em aberto para definição posterior do regulador, que inclusive não foi definido.
No entanto, há uma expectativa do mercado de que o Banco Central (BC) fará grande parte das regulações e o próprio presidente da entidade, Roberto Campos Neto, já se pronunciou nesse sentido.
Entre as funções do regulador, ele terá de autorizar o funcionamento dessas empresas, assim como supervisionar seu funcionamento, inclusive com o poder de cancelar a autorização caso entenda necessário.
Código penal
Para tratar das fraudes e crimes cometidos, o texto inclui no Código Penal um trecho no artigo 171 que prevê “fraude em prestação de serviços de ativos virtuais, valores mobiliários ou ativos financeiros”.
Quem organizar, gerir, ofertar carteiras ou intermediar operações com fim de obter “vantagem ilícita” induzindo ou mantendo alguém em erro mediante qualquer meio fraudulento terá pena de 2 a 6 anos de reclusão e multa.
O projeto também inclui as operações com ativos virtuais na legislação contra lavagem de dinheiro e crimes contra o sistema financeiro, além de obrigar as empresas a manter cadastro atualizado no Coaf.
Tempo de transição
O texto determina que o regulador estabeleça as condições e prazo, em até seis meses, para que as empresas que já estejam em atividade se adequem à nova lei e aos regulamentos estabelecidos posteriormente.
Nesse período e até que sejam autorizadas a funcionar pelo regulador, as empresas poderão atuar se estiverem cadastradas no sistema do Coaf, se tiverem CNPJ e cumprirem a legislação fiscal brasileira.
Incentivo tributário
O projeto que saiu do Senado prevê alíquota zero de Pis/Pasep, Cofins, Imposto de Importação e Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) em operações de importação, industrialização e comercialização de hardware e software utilizadas no processamento, mineração e preservação de ativos virtuais.
A redução só vai se aplicar se as empresas utilizarem 100% de energia elétrica vinda de fontes renováveis e neutralizarem 100% das emissões de gás de efeito estufa. A redução seria válida até dezembro de 2029.
Segregação de ativos
De acordo com o projeto aprovado no Senado, as operações no mercado cripto estarão protegidas pelo Código de Defesa do Consumidor.
O texto também determina que as empresas mantenham separados os patrimônios dos clientes e os da própria empresa, inclusive mencionando que os recursos de terceiros não poderão sofrer sequestro, busca e apreensão ou arresto em função de decisões judiciais que envolvam a empresa.
Em adição, os recursos dos clientes não podem ser dados em garantia pela empresa e deverão ser restituídos em caso de falência.