Noite do dia 20 de maio de 2018, um dia antes da greve dos caminhoneiros. Ao andar pela Rua da Consolação, na capital paulista, era possível ver postos de combustíveis lotados e filas enormes nos caixas de supermercados. A movimentação era apenas um sinal de que a economia do país poderia ser desestabilizada horas depois.
Em conversas e mensagens de áudio enviadas por meio de aplicativos, caminhoneiros deflagraram uma greve geral, que provocaria desabastecimento no país e interromperia o transporte de alimentos, combustíveis e até insumos médicos. Também reduziria frotas de ônibus e faria com que escolas suspendessem aulas.
A greve tomou forma depois que a Petrobras anunciou para o dia 22 de maio um reajuste de 0,9% no preço da gasolina e de 0,97% no preço do diesel nas refinarias. Na ocasião, o litro da gasolina passou a custar R$ 2,06. O do diesel, por sua vez, chegou a R$ 2,37. O último acumulava alta de mais de 50% nos últimos 12 meses até então.
A categoria ainda reivindicava redução nas alíquotas dos impostos cobrados sobre os combustíveis, como o PIS/Cofins e o Cide. Além disso, exigia a fixação de uma tabela mínima para os valores do frete
Na época, discursos anticorrupção e pró-ditadura militar também ganharam força.
Houve paralisação em rodovias e em áreas estratégicas, como o Porto de Santos (SP) e refinarias. Em seu auge, o movimento chegou a atingir 24 estados e o Distrito Federal.
Durante a greve, consumidores passaram a registrar reclamações sobre preços abusivos praticados pelos postos, em meio ao desabastecimento de combustíveis.
No dia 23 de maio daquele ano, a Petrobras, na época sob o comando de Pedro Parente, chegou a anunciar uma redução de 10% no preço do óleo diesel nas refinarias por 15 dias e o congelamento dos preços durante esse período. Não foi suficiente.
Dois dias depois, o então presidente Michel Temer (MDB) assinou um decreto em que autorizava as Forças Armadas a desbloquear vias, numa tentativa de evitar o desabastecimento. Foi a primeira vez que uma operação GLO (de Garantia da Lei e da Ordem) tinha abrangência nacional.
O STF (Supremo Tribunal Federal) deu aval à remoção de manifestantes que estivessem bloqueando acessos ou protestando nos acostamentos das pistas. Também autorizou a aplicação de multas de até R$ 10 mil para os que fizessem bloqueios e de até R$ 100 mil para entidades que organizassem esse tipo de ação.
Em nova tentativa de pôr fim à greve dos caminhoneiros, Temer cedeu às pressões e anunciou novas medidas. Em 27 de maio de 2018, o governo anunciou redução de R$ 0,46 por litro de diesel, o que equivaleria ao corte do PIS/Cofins e do Cide sobre o combustível. A medida teria validade de 60 dias.
Anunciou também a isenção da cobrança de pedágio para eixo suspenso de caminhões vazios em rodovias federais, estaduais e municipais. Determinou que os 30% dos fretes da Conab fossem feitos por caminhoneiros autônomos e estabeleceu uma tabela mínima para os valores dos fretes.
A decisão se deu após reunião com representantes do setor
A greve foi perdendo força após dez dias, com o desbloqueio de estradas pelas Forças Armadas e o acordo com o governo. O abastecimento de comidas e de combustíveis começava a apresentar sinais de normalidade.
Bolsonaro apoiou, mas mordeu a língua
Jair Bolsonaro (PL), até então deputado federal e pré-candidato à presidência da República pelo PSL, chegou a manifestar apoio à greve. "Apenas a paralisação poderá forçar o presidente da República [Michel Temer] a dar uma solução para o caso", disse à época, em vídeo publicado nas redes sociais às vésperas do início da paralisação.
Hoje presidente, Bolsonaro mordeu a língua. Neste mês, a Petrobras reajustou em 8,87% o preço do diesel nas refinarias. O custo médio para as distribuidoras passou de R$ 4,51 para R$ 4,91 por litro. O combustível subiu 52,53% em um ano.
O novo reajuste foi o estopim para a saída do almirante Bento Albuquerque do Ministério de Minas e Energia. Assumiu o posto o economista Adolfo Sachsida, secretário especial do Ministério da Economia e um dos homens de confiança do ministro Paulo Guedes.
Em meio às pressões sobre combustíveis, lideranças de caminhoneiros já começaram a falar sobre a possibilidade de uma nova greve. A categoria é uma das bases eleitorais do presidente, que tenta a reeleição neste ano. Jair Bolsonaro aparece em segundo lugar nas pesquisas de intenção de voto, atrás do seu maior rival, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Situação semelhante à de 2018?
Assessor-executivo da Confederação Nacional de Transportadores Autônomos (CNTA), Marlon Maués não acredita que em 2022 haja um cenário parecido com o de 2018.
Ele acusa as grandes transportadoras e empresas ligadas ao agronegócio, que também utilizam o diesel como combustível em suas máquinas, de terem usado os caminhoneiros autônomos como massa de manobra para atender seus próprios interesses.
"No transporte rodoviário de cargas, você tem o embarcador, que contrata uma transportadora, que por sua vez, contrata o caminhoneiro autônomo", explica.
Em sua avaliação, hoje os caminhoneiros têm maior ciência de que precisam repassar os reajustes do diesel para a composição do preço do frete. Contudo, "por serem hipossuficientes, não conseguem fazer isso, e o custo é absorvido por esses elos intermediários".
Mesmo do lado político oposto, o presidente da Associação Brasileira de Condutores de Veículos Automotores (Abrava) e um dos líderes da greve de 2018, Wallace Landim, conhecido como "Chorão", concorda que os cenários são diferentes.
"Existe uma situação econômica dentro do nosso país totalmente diferente de 2018. Essa é a nossa grande preocupação, porque a classe média e a classe baixa são as que mais sofrem com a questão da economia. Tivemos a pandemia de Covid-19, e agora, a guerra na Ucrânia", diz.
"Nós já estamos pagando para trabalhar, muitos transportadores estão saindo do ramo. Mas para não prejudicar ainda mais a nossa categoria e a população, nós estamos, com muita responsabilidade, conversando com todos os setores, com toda a sociedade, porque calado a gente não pode ficar. Automaticamente, se continuar do jeito que está, a categoria vai parar porque não tem mais condições de rodar".
Culpado? Quem é?
Bolsonaro procura um culpado para o aumento dos preços dos combustíveis. E a política de preços da Petrobras tem sido o principal alvo de críticas do presidente. Desde 2016, a estatal se baseia na cotação do petróleo no mercado internacional. É o chamado Preço de Paridade Internacional (PPI).
A margem de lucro da empresa é outra coisa que está na mira de Bolsonaro. No último dia 6, a Petrobras anunciou um lucro líquido de R$ 44,561 bilhões no primeiro trimestre deste ano. Jair Bolsonaro chegou a chamar isso de "estupro" .
O ataque aconteceu no primeiro mês de José Mauro Ferreira Coelho na presidência da estatal. Poucas semanas depois de assumir o cargo, o economista havia reforçado o compromisso com a política de preços da companhia e sinalizado que não cederia às pressões do Planalto pelo controle dos reajustes.
Entretanto, o economista e professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp) Elton Eustaquio Casagrande explica não ser possível considerar o lucro da Petrobras como culpado pelo reajuste no preço dos combustíveis.
"Não se pode afirmar com certeza. Seria necessário se debruçar sobre os balanços e avaliar temporalmente se o que ocorre no preço da bomba se reverte no lucro imediatamente".
Já o deputado Nereu Crispim (PSD-RS), presidente da Frente Parlamentar Mista do Caminhoneiro Autônomo e Celetista, responsabiliza o presidente Jair Bolsonaro por não alterar a resolução que estipula o PPI.
"O PPI não é uma lei, é uma resolução que pode ser sim alterada por ele, porque esse conselho é presidido pelo ministro de Minas e Energia, subordinado ao Presidente da República. Então, ele está tentando, mais uma vez, arrumar um 'boi de piranha' para justificar os aumentos dizendo que não é culpa dele, sendo que é ele quem bota o presidente da Petrobras, ele bota o ministro. Como é que ele vai transferir a responsabilidade para terceiros? Não pode", alfineta.
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"Bolsonaro: um traidor"
Logo quando assumiu a presidência do Brasil, Jair Bolsonaro prometeu uma agenda que favorecesse os caminhoneiros, responsáveis por uma gama de votos nas eleições de 2018. No entanto, a categoria enfrentou resistências de suas demandas no Palácio do Planalto e reclamou da falta de interlocução com o governo.
No começo da gestão, ainda em 2019, o então ministro da Infraestrutura, Tarcísio Freitas, tomou frente das negociações com associações ligadas à categoria. As tratativas estavam às escondidas até dezembro de 2020, quando a Petrobras iniciou a maior sequência de altas nos combustíveis dos últimos anos.
Em novembro de 2020, por exemplo, o diesel custava R$ 3,77 nas bombas. Dois meses depois, o valor chegou a R$ 4,10, segundo dados da Agência Nacional do Petróleo (ANP). Hoje, o valor já chega a R$ 6,94 nos postos de combustíveis.
Após tentativas frustradas de conversa com o Planalto para reduzir o preço dos combustíveis, a categoria iniciou uma mobilização para pressionar o governo federal a cumprir as promessas de campanha. A paralisação, porém, não teve a adesão esperada e acabou por ficar esquecida na Praça dos Três Poderes.
A pressão sobre Bolsonaro se manteve, até que o presidente optou pela redução de impostos federais sobre o diesel. O texto foi aprovado pelo Congresso Nacional, mas ainda não satisfez os caminhoneiros, que conviveram com novos reajustes nos preços no segundo semestre de 2021.
"Bolsonaro fez um vídeo em que garantiu uma pauta para caminhoneiros, colocou o ministro Tarcísio [Freitas] como interlocutor, mas não adiantou nada. Só empurrou com a barriga durante três anos", afirma Crispim.
"Realmente não existe essa identificação mais com o governo Bolsonaro, muito menos com ele. A categoria, hoje, não é identificada com esse governo. Bolsonaro traiu os caminhoneiros. Nos vemos abandonados", completa.
Marlon Maués, da CNTA, desviou das perguntas sobre o presidente. Já Chorão, da Abrava, também disse se sentir traído.
"Eu fui uma das pessoas que fez campanha para ele [Bolsonaro], acreditando que realmente iria fazer alguma coisa. Quando assumiu a postura de chefe de nação, ele mudou o discurso. Adotou a questão da transferência de responsabilidade. Então, a gente se sente, sim, muito triste com a postura dele".
"Não adianta nada você apontar que acha que é absurdo, que está quebrando o país, e não fazer nada. A gente acredita que o chefe da nação precisa pegar sua responsabilidade e salvar o seu povo. Quem tem fome, tem pressa", completa Chorão.
Greve à vista?
As promessas não cumpridas de Bolsonaro somadas aos frequentes reajustes nos preços dos combustíveis estão inflando a insatisfação dos caminhoneiros nos últimos meses. Em diversas reuniões realizadas entre o fim do ano passado e o começo de 2022, a categoria abriu a possibilidade de uma nova greve.
Entretanto, há a preocupação com os efeitos econômicos que uma paralisação parecida com a de 2018 poderá causar no país.
"A categoria realmente está na iminência de fazer uma paralisação, porque os mais de 900 mil caminhoneiros não têm mais de onde tirar para pagar o diesel, recapagem de pneus, pedágios e custos com o transporte. Fora isso, é muito complicado repassar o valor para o frete", revela o deputado Nereu Crispim.
"Eu sou contra a paralisação, até porque não favorece. Não será apresentada uma solução imediata. Penso que uma greve neste momento acabaria jogando lenha na fogueira. Fora a crise econômica sem precedentes que poderá se instalar no Brasil após uma grave crise sanitária…", continua o presidente da Frente Parlamentar Mista do Caminhoneiro Autônomo e Celetista.
A opinião é compartilhada por Chorão. Líder da greve de 2018, ele acredita que agora seria preciso uma mobilização de toda a sociedade.
"Já era para a gente ter parado? Sim, era. Era para ter mais uma paralisação cobrando governo federal, Petrobras, governadores e deputados, que ficam todos calados. Ninguém fala nada, e a população fica esperando os caminhoneiros se mobilizarem. Só que está na hora de os caminhoneiros apoiarem a sociedade, e não a sociedade apoiar os caminhoneiros".
"A conta dos combustíveis não é uma conta só dos transportadores autônomos rodoviários; é uma conta de toda a sociedade. Está todo mundo sofrendo. A fila dos postos de combustíveis é a mesma para a direita e para a esquerda. É necessário conscientizar toda a população que nós precisamos falar a mesma língua. Chegou a hora de cobrar o Executivo, o Legislativo e o Judiciário", diz.
Maués também descarta que haja uma nova greve à vista. "Paralisação é o último recurso de uma categoria para atingir qualquer pleito desejado. Antes, tem que haver muita negociação e muito diálogo'.
Solução para os combustíveis
Às vésperas das eleições e precisando recuperar sua popularidade, Bolsonaro sancionou em março um projeto de lei complementar que zera o PIS/Cofins sobre o diesel e altera a cobrança do ICMS sobre os combustíveis.
Mais recentemente, ainda editou uma medida provisória que reduz de 10% para 5% o gatilho da revisão da tabela do frete.
Desde 2018, a lei previa a revisão semestral do valor do combustível considerado na tabela, além da revisão extraordinária desse custo sempre que identificado reajuste no preço do diesel igual ou superior a 10%.
A lei foi criada durante o governo de Michel Temer (MDB) como resposta à greve dos caminhoneiros naquele ano.
Agora, essa revisão extraordinária passará a ser feita sempre que identificado aumento igual ou superior a 5% no valor do diesel.
A medida até agradou a parcela mais alinhada ao bolsonarismo, mas não causou efeitos positivos em grande parte da categoria.
Um dos insatisfeitos é o diretor da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Transportes e Logística (CNTTL), Carlos Alberto "Litti" Dahmer. Em vídeo divulgado nas redes sociais, ele chamou a ação do presidente de "forte investida para terminar com o que se conquistou e ainda não foi implementado em sua totalidade".
Com "não implementado em sua totalidade", Litti acusa as agências reguladoras do país, como a ANP, o Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) e a ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres), de não cumprirem o seu papel de fiscalizar e garantir que a lei do piso mínimo do frete fosse cumprida, opinião compartilhada pelas outras lideranças mencionadas nesta reportagem.
O especialista em Administração Pública e também professor da Unesp Álvaro Martim Guedes ressalta a necessidade de uma ajuda de custo direta aos caminhoneiros por parte do governo. O docente lembra do interesse de Bolsonaro em ter a categoria por perto para garimpar eleitores, entretanto, para ele, o Planalto teria olhos apenas para as grandes transportadoras.
"O que teria que ser feito é algum tipo de ajuda de custo diretamente aos caminhoneiros. Mexer em alguma coisa, por exemplo, o frete, vai contra o interesse das grandes transportadoras".
"Esse governo que aí está quer seguir amigo dos caminhoneiros, mas na verdade ele é amigo das grandes transportadoras. Os caminhoneiros são usados como massa de manobra para os interesses de Bolsonaro", finaliza.