O crescimento da oferta de empréstimos que usam celulares como garantia de pagamento têm gerado controvérsias, por conta da possibilidade de bloqueio dos telefones, caso os consumidores atrasem uma parcela. A interrupção é feita por um aplicativo baixado no momento da contratação do crédito. O aparelho só volta a funcionar quando o pagamento é efetuado. Essa possibilidade de bloqueio levou o promotor Paulo Roberto Binicheski, da 1ª Promotoria de Defesa do Consumidor do Ministério Público do Distrito Federal (MPDFT), a abrir uma investigação. Para ele, a prática viola o Marco Civil da Internet, ao impedir que o usuário se comunique, a liberdade de expressão e o direito à propriedade.
"Abri uma investigação para apurar a prática divulgada pela Serasa e pela SuperSim e enviei um comunicado ao Banco Central e à Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) pedindo que informassem sobre a autorização para a operação", explica Binicheski.
No pedido feito 4 de fevereiro, o promotor solicita que a Serasa e a SuperSim (responsável por um aplicativo de bloqueio de aparelho e uma plataforma de crédito) apresentem, em até dez dias úteis, os modelos de contrato-padrão e a autorização da Anatel para o bloqueio dos celulares. Pede até que seja informado o número de contratos firmados, com a data de início.
A página da Serasa lista orientações e vantagens na contratação desse tipo de crédito. Mas o consumidor precisa ter em mente que está assumindo uma dívida. Por isso, é importante avaliar se o empréstimo é mesmo a melhor solução, diz Cássio Coelho, presidente do Procon-RJ.
"É preciso ter muito cuidado, principalmente, se a pessoa usa o celular para trabalhar. Se ficar devendo as parcelas, poderá ter o celular bloqueado e aumentar o problema financeiro", alerta a educadora financeira Aline Soaper
Procurada, a Serasa informou que “não é a responsável pela concessão de crédito, tampouco pela operação de aplicativos de outras empresas que eventualmente realizem bloqueio de celulares”. Afirmou ainda que as ofertas disponíveis em seu site e as condições de contratação “são de inteira responsabilidade das empresas concedentes de crédito”.
A SuperSim, por sua vez, afirmou que até o momento não foi notificada oficialmente pelo MPDFT e que seu modelo de negócio tem autorização dos devidos órgãos reguladores, bem como embasamento legal na legislação brasileira.
"A exemplo do que já acontece no mercado de crédito, que atua com garantia de bens como imóveis e veículos, a SuperSim atua com o aparelho celular como garantia. Essa modalidade é extremamente relevante para a população que pertence as classes C e D, especialmente para os negativados e trabalhadores com renda abaixo de um salário mínimo, que não teriam acesso a outras modalidades de microcrédito disponíveis atualmente no mercado”, diz em nota.
A companhia reforça ainda que o processo é transparente, validado pelo próprio usuário, que realiza o aceite do contrato, bem como suas condições, via aplicativo.
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"A SuperSim reitera que está à disposição das autoridades para prestar qualquer esclarecimento que se fizer necessário", finaliza a nota.
Risco aos mais vulneráveis
Professor de Direito do Consumidor e ex-diretor do Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor do Ministério da Justiça, Ricardo Morishita, avalia que esse tipo de transação põe em risco os mais vulneráveis:
"Se isso não é uma cobrança abusiva, não sei mais o que é. Perderam a noção do bom senso. Estão se aproveitando do estado de vulnerabilidade do consumidor, que se agravou durante a pandemia, com perda de renda, para implementar práticas abusivas. E não adianta alegar que o consumidor aceitou essa condição. Isso não tornar lícita uma prática que é abusiva."
Para o advogado Marcelo Sales, a possibilidade de bloqueio do celular é uma forma de coagir o cliente.
"Não se trata de garantia reconhecida por lei, mas de uma nova forma de coagir o consumidor a pagar", diz.
Para ele, essa transação se assemelha mais ao crime de exercício arbitrário das próprias razões (Código Penal - Art. 345 - Fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a lei o permite) do que à modalidade conhecida de garantia como o penhor (Código Civil - Art. 1.431 - Constitui-se o penhor pela transferência efetiva da posse que, em garantia do débito ao credor ou a quem o represente, faz o devedor, ou alguém por ele, de uma coisa móvel, suscetível de alienação):
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"O consumidor deve procurar uma financeira séria, que oferte empréstimos consignados ou não, mas que não envolva impedir o uso de seus bens para forçar o pagamento das parcelas."
Juros variam de 10% a 18%
Em geral, o valor máximo de empréstimo concedido pelas empresas nessa modalidade é de R$ 2.500. O processo de requisição é todo feito digitalmente. São aparelhos com sistema operacional Android. A garantia, segundo a Serasa eCred explica na sua página, consegue reduzir os juros que seriam aplicados. Mesmo assim, as taxas variam de 10% a 18% ao mês.
O presidente do Procon-RJ, Cássio Coelho, adverte que, por mais atraente que seja a linha de crédito, não vale a pena pagar juros ao banco para o que não é urgente e, no caso desse tipo de empréstimo, correr o risco de ter o bem bloqueado.
Ele ainda orienta o consumidor a não confiar apenas no que está sendo ofertado verbalmente pelo atendente da instituição financeira.
"Verifique se o que foi oferecido está escrito no contrato. Leia atentamente todas as cláusulas contratuais antes de assinar qualquer documento", afirma Coelho.
Ao pegar empréstimo em um correspondente bancário, acrescenta, o cliente deve procurar saber quem é o banco ou a financeira por trás que oferece o crédito e se informar sobre a credibilidade da empresa.
"Muito cuidado com empréstimos ofertados por telefone ou pela internet. É importante o consumidor ficar atento para não cair em golpes e não fazer pagamento antecipado como forma de obter a liberação do empréstimo", diz.
Segundo ele, não existe contrato em que o consumidor tenha que pagar antecipadamente alguma quantia para obter o empréstimo. Coelho alerta que isso é um indicativo de fraude e não deve ser aceito de forma alguma pelo consumidor.
Bloqueio é proibido no Marco Civil da Internet
A Lei n° 12.965/2014, em vigor desde o governo Dilma Rousseff, criou Marco Civil da Internet fundamentado em três pilares: liberdade de expressão, neutralidade de rede e privacidade.
O primeiro corresponde à liberdade de pensar e adotar livremente a ideias que circulam nas redes sem ser julgado por isso. Contudo, vale lembrar que, assim como consta no texto constitucional, veda-se o anonimato do usuário. Isto significa dizer que esse direto não é absoluto, e cabe a responsabilização cível ou criminal dos usuários da rede que excedem os limites do bom senso na hora de se expressar.
Outro pilar é a neutralidade da rede. Ela está prevista no artigo 9 do Marco Civil da Internet, segundo a qual os provedores de internet devem tratar os pacotes de dados que trafegam em suas redes sem discriminação em razão do conteúdo, origem, destino, aplicação etc.
Esse princípio permite que o usuário possa acessar qualquer conteúdo na internet sem que a operadora de telecomunicação interfira na navegação, tornando-a mais lenta ou bloqueando o acesso. O bloqueio do celular até o pagamento da parcela em atraso é justamente um dos pontos questionados pelo promotor do DF, Paulo Roberto Binicheski.
A privacidade, prevista no artigo 5° da Constituição, também está no Marco Civil da Internet. Este pilar tem por objetivo proteger os dados dos usuários, exigindo consentimento para quaisquer operações realizadas com as informações. A lei determina a indenização por dano material ou moral decorrente de violações à intimidade, às comunicações sigilosas e à vida privada, o que aconteceria em caso de bloqueio do celular.