O programa de empréstimos através do aplicativo Caixa Tem para população de baixa renda foi duramente criticado por economistas que temem o alto risco de endividamento das famílias mais vulneráveis e de entidades que defendem a implementação de uma renda básica mínima no país. A Caixa Econômica lançou crédito para tomadores entre R$ 300 e R$ 1.000, com cobrança de juros de 3,99% e 24 meses para pagar.
O anúncio da nova linha de crédito ocorre num momento em que o auxílio emergencial está prestes a acabar sem que o governo tenha encontrado uma solução para bancar o Auxílio Brasil, novo programa social que incorporaria parte dos brasileiros que ficarão sem o benefício.
Também ocorre em meio a sucessivas altas da taxa básica de juros, o que pode encarecer o crédito para famílias com poucos recursos que são alvo da nova linha de financiamento.
Para a professora Myrian Lund, especialista em finanças e professora dos MBAs da Fundação Getulio Vargas (FGV), às vésperas do fim dos pagamentos do auxílio emergencial e um quadro de agravamento da crise econômica, o crédito para a população de baixa renda é a aposta do governo para estimular o consumo das famílias no fim do ano e evitar um desempenho ainda pior do Produto Interno Bruto (PIB).
"A economia deixando de crescer é um inconveniente para o governo. (O programa de crédito) É uma forma de tentar manter o PIB com essa população consumindo. As pessoas tem que ter algum consumo para sustentar o PIB. Vejo hoje essa medida de tentar segurar a economia, com juros subindo, a inflação lá em cima, um quadro negativo para a economia do país. O governo está estimulando as pessoas a irem ao consumo mantendo o mínimo da economia funcionando. Não é por acaso a data escolhida para liberar o crédito. É para dar continuidade ao auxílio que termina e continua a parte da política sem embasamento nenhum" ressalta Lund.
A economista avalia ainda que a medida voltada à população de baixa renda e extremamente vulnerável vai aumentar o endividamento das famílias. Ela destaca que por causa do alto risco de inadimplência, a Caixa está oferecendo o crédito cobrando juros mais altos do mercado. Na média do mercado, o crédito consignado tem juros médios de 1,45% e crédito pessoal de 2,42%. A própria Caixa pratica juros mais baixos para empréstimo pessoal para pessoa física fora do aplicativo Caixa Tem. A média, segundo dados do relatório do Banco Central é de 1,64% ao mês. Até mesmo as taxas de juros médias do Banco do Brasil são mais baixas 3,33% a.m. Segundo analistas, a diferença entre as aplicadas pela Caixa, na mesma modalidade e outros bancos em relação ao Caixa Tem, é o risco de calote do tomador do crédito:
"As pessoas começam a usar este dinheiro como complemento da renda para comprar comida. É um empréstimo quase impagável que vai gerar endividamento. É uma taxa de juros alta. Os bancos estão trabalhando com 2% ao mês e a Caixa oferecendo o dobro. É um problema futuro, não existe educação financeira ou instrução. É diferente de oferecer um microcrédito direcionado para retomar uma atividade financeira que vai gerar renda para aquela família", explica Myrian Lund.
Simão Davi Silber, professor sênior do Departamento de Economia da USP e Pesquisador da FIPE, destaca que quem está quem grande parte do público que possui contas no Caixa Tem encontra-se em vulnerabilidade e não tem capacidade de pagamento:
"Como funciona o empréstimo em um banco comercial? Ele empresta para quem tem bom cadastro e vai pagar. A Caixa quer usar um programa de crédito com base em um cadastro muito rudimentar porque são pessoas que não têm acesso a renda de uma maneira consistente, mais adequada e mais estável. Se tiver dimensão grande em número de empréstimos, dificilmente o crédito será pago e a conta é da viúva, ou seja do maior acionista do banco que é o governo, o Tesouro Nacional", afirma Silber.
Segundo Myrian Lund, a vantagem de acesso a um crédito voltado para esse público seria se o recurso fosse empregado para desenvolver alguma atividade econômica:
"O acesso seria interessante para alavancar a vida destes trabalhadores. Por exemplo, para comprar equipamentos para conseguir trabalhar, produzir uma renda fazer alguma coisa. Isso seria um microcrédito direcionado para atividade produtiva. Esse empréstimos seria positivo. Promovendo uma possiblidade de gerar algum trabalho. Por outro lado, se as pessoas começam a usar este dinheiro como complemento da para comprar comida é um empréstimo quase impagável que vai gerar endividamento", ressalta ela.
Falta política pública de renda mínima
A Rede Brasileira de Renda Básica, entidade que defende a implementação de políticas públicas de renda mínima e rede de proteção social no país, vê a iniciativa com preocupação. A diretora de Relações Institucionais da Rede, Paola Carvalho, observa que o governo ainda não conseguiu solucionar o impasse sobre a criação e o orçamento necessário para o programa Auxílio Brasil, criado para substituir o Bolsa Família.
Carvalho lembra que a fila de brasileiros em situação de pobreza e extrema pobreza está crescendo, hoje são quase 1,2 milhão de pessoas que atendem aos critérios do programa e estão inscritos no Cadastro Único para benefícios sociais do governo, mas não foram incluídas para receber a ajuda. Além disso, ela ressalta o risco de endividamento de um grande contingente populacional em situação de vulnerabilidade social.
"Levanta uma grande preocupação sobre endividamento, vinculando um empréstimo a uma política pública de proteção social. O próprio governo revê mensalmente os critérios de elegibilidade para concessão do benefício social. É uma política de proteção com processo de reavaliação e sem garantia de permanência. A dois dias do pagamento do auxílio emergencial, por exemplo, o beneficiário é avisado que não vai mais receber porque deixou de atender aos requisitos do programa. Agora, a pessoa poderá deixar de receber o benefício social e ainda vai estar endividada. É o próprio Estado brasileiro colocando a população em situação de endividamento ", de potenciais clientes e pessoas que têm conta poupança social – aberta pela instituição para pagar o auxílio emergencial e outros benefícios, como o Bolsa Família, abono salarial, saque emergencial do FGTS, pagamento do Programa de Preservação do Emprego e Renda (Bem).
A diretora da Rede Brasileira Renda Básica lembra que em novembro será paga a última parcela do auxílio emergencial e que o governo ainda terá que resolver o passivo de pessoas que estão sem renda e não foram incluídas no Bolsa Família. Além disso, o juro do Caixa Tem é acima da média do mercado.
"Colocar as pessoas que recebem política pública de transferência de renda para pagar empréstimo é um retrocesso escandaloso. Tem outras respostas do ponto de vista social muito mais urgentes do que essa política que é para engordar o banco com cobrança de juros, não estamos falando nem de empréstimo subsidiado. Por outro lado, existe uma dificuldade de acesso à política de transferência de renda e na medida provisória que cria o Auxílio Brasil não há detalhamento sobre valor e o número de beneficiários. Se o governo conseguir chegar a 17 milhões de atendidos, que é o máximo que o ministro Paulo Guedes está falando, teremos pelo menos 22 milhões de pessoas com renda zero em novembro com o fim do auxílio emergencial", explica Paola Carvalho.
Quem tem Bolsa Família fica de fora
Quem ganha Bolsa Família não poderá contratar o empréstimo, segundo a Caixa, por questões legais e técnicas, como a transformação da conta poupança social em conta digital. Beneficiários dos demais programas poderão tomar o empréstimo se forem aprovados na análise cadastral.
Pessoas com restrições no Serasa e SPC e que tenham outros financiamentos que impactam a capacidade de pagamento não terão o crédito aprovado.