Até o reconhecimento do direito à privacidade trazido no ensaio “The Right to Privacy”, de lavra dos juristas Samuel D. Warren e Louis D. Brandes, publicado na revista de Direito de Harvard em 1890, somente encontrávamos referências esparsas sobre o assunto nos estudos filosóficos da Grécia Antiga. É notório, por exemplo, a ideia de privacidade aristotélica, que distinguia a vida pública e a particular do cidadão grego, denominadas, respectivamente, polis e oikos.
Na passagem do séc. XIX para o séc. XX, compreendeu-se o termo privacidade” como a vedação da intromissão de terceiras pessoas na vida particular do indivíduo. Na obra supra, os juristas norte-americanos cunharam o verbete “The Right to be Alone” (o direito de estar só), elencando inúmeras possibilidades das relações sociais interferirem na individualidade humana, tais como, a situação de ter sua imagem capturada por uma máquina fotográfica.
Nesse sentido, Viviane Nóbrega Maldonado, na obra “LGPD – Lei Geral de Proteção de Dados”, 2ª edição, 2019, p. 215, cita trecho do artigo vanguardista da revista de Direito de Harvard que afirma a natureza mutável da concepção de privacidade, vez que, com a evolução tecnológica e o aumento de possibilidade de registro das ações humanas, maior será a possibilidade de se atingir esferas da vida pessoal do indivíduo que antes eram inacessíveis.
“That the individual shall have full protection in personal and in property is a principle as old as the commom law; but it faz been found necessary from time to time to define anew the exact nature as extent of such protection”.
Do ponto de vista normativo, citamos o ano de 1953 como marco histórico inicial do reconhecimento da proteção da vida privada como direito fundamental do ser humano. Naquele ano, a Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades, em seu art. 8º, resguardou o direito ao respeito da vida privada do indivíduo, inclusive, contra ações do Poder Público que não estiverem revestidas de interesse público relacionado à segurança pública e desenvolvimento econômico do país.
Cerca de três décadas depois, em 1980, foi subscrita a Convenção para a Proteção das Pessoas Singulares, responsável por dispor acerca do tratamento automatizado de dados pessoais no âmbito do Conselho da Europa. Nos estertores do sec. XX, a Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia de 2000, teve o condão de dar maior visibilidade aos direitos e garantias fundamentais consagrados ao longo do século.
A referida Carta passou por reformulação por meio do Tratado de Lisboa (Tratado Reformador), assinado pelos estados-membros da União Europeia (UE) em 2007, com entrada em vigor em 2009. O referido acordo internacional emendou o Tratado da União Europeia (TUE) e criou a reconhecida Comunidade Europeia (Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia – TFUE), estabelecendo em seu art. 8º a proteção dos dados pessoais do indivíduo como parte integrante de sua privacidade. Na mesma linha, o art. 16 do TFUE reconheceu tal direito.
Na esfera dogmática, muito se discute sobre a diferença entre os verbetes “privacidade” e “intimidade”, vez que o art. 5º, X, CF, coloca ambos como direitos e garantias fundamentais.
Art. 5º, X, CF. são invioláveis a intimidade , a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurando o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.
O referido dispositivo constitucional exemplifica quatro elementares que poderão compor a esfera privada do indivíduo: intimidade, vida privada, honra e imagem. A honra da pessoa pode ser subdividida em dois aspectos: honra objetiva, consistente na apreciação social que a pessoa goza perante a comunidade; e a honra subjetiva, consistente na apreciação pessoal que o indivíduo faz de si próprio.
“ Honra objetiva (honra externa): é o conceito que o indivíduo possui perante seus pares em relação aos seus atributos morais, éticos, físicos e intelectuais. Refere-se ao apreço e respeito da pessoa no grupo social. É, em suma, a reputação moral da pessoa.
Honra subjetiva (honra interna): é o conceito que o indivíduo possui de sua própria dignidade (honra-dignidade = qualidades morais) e decoro (honra-decoro = qualidades físicas e intelectuais). Trata-se do autoconceito dos atributos morais, éticos, físicos e intelectuais. Refere-se ao nosso amor próprio e autoestima”. (AZEVEDO, Marcelo André de; SALIM, Alexandre. “Direito Penal – Parte Especial – Dos crimes contra a pessoa aos crimes contra a família”. 9ª edição, 2020, p. 151).
Quanto à imagem , também podemos interpretá-la sob três aspectos, quais sejam: imagem social ou objetiva, consistente na avaliação e ideia que terceiros fazem do titular da imagem; imagem-retrato, caracterizada pela dimensão física da pessoa que pode ser capturada por aparatos tecnológicos (vídeo, fotografia, pinturas ou caricaturas) e imagem autoral, consistente na imagem do autor que participa de obras coletivas.
Não há dúvidas que no uso cotidiano do idioma, a sociedade classifica “privacidade” e “intimidade” quase que como uma sinonímia perfeita. Contudo, não seria à toa que o legislador originário teria discriminado os dois verbetes no mesmo artigo. Entende-se que a privacidade é composta pelo espectro mais amplo do indivíduo, em sua maioria das vezes relacionado com relações profissionais ou comerciais que o cidadão gostaria de manter em sigilo ou que não fosse de conhecimento público. Por sua vez, a intimidade está ligada aos elementos personalíssimos da pessoa, tais como autodeterminação de seu corpo, desejos, crenças e relações estabelecidas com entes familiares ou pessoas de círculo restrito de amizade.
“O direito à privacidade teria por objeto os comportamentos e acontecimentos atinentes aos relacionamentos pessoais em geral, às relações pessoais e profissionais que o indivíduo deseja que não espalhem ao conhecimento público. O objeto do direito à intimidade seriam as conversações e os episódios mais íntimos, envolvendo relações familiares e amizade mais próximas”. (MENDES, Gilmar Ferreira e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet, “Curso de Direito Constitucional”, 14ª edição, 2019, p. 286).
Nesse mesmo sentido nos ensina Flávio Martins, em “Curso de Direito Constitucional”, 3ª edição, 2019, p. 776:
“A intimidade é um círculo menor, que se encontra no interior do direito à vida privada, correspondendo às relações mais íntima da pessoa e até mesmo a integridade corporal, não se admitindo as “intervenções corporais” (admitidas excepcionalmente em outros países) ”.
Acerca da dimensionalidade dos verbetes “privacidade” e “intimidade”, o STF, no HC 71.373, de relatoria do ex-min. Francisco Rezek para acórdão do min. Marco Aurélio, datado de 10/11/94, assim se manifestou:
“(...) discrepa, a não mais poder, de garantias constitucionais implícitas e explícitas – a preservação da dignidade humana, da intimidade, da intangibilidade do corpo humano, do império da lei e da inexecução específica e direta de obrigação de fazer – provimento judicial que, em ação civil de investigação de paternidade, implique determinação no sentido do réu ser conduzido ao laboratório “debaixo de vara”, para coleta de material indispensável à feitura do exame de DNA. A recusa resolve-se no plano jurídico instrumental, consideradas a dogmática, a doutrina e a jurisprudência, no que voltadas ao deslinde das questões ligadas à prova dos fatos”. (In. MARTINS, Flávio. “Curso de Direito Constitucional”, 3ª edição, 2019, p. 776)
O ordenamento jurídico pátrio, por ter elevado a proteção à privacidade como direito e garantia fundamental, reforçou a impossibilidade de ingerência estatal na vida particular do cidadão, até porque tal ação, além de violar o art. 5º, X, CF, romperia com os princípios da proporcionalidade, liberdade e dignidade da pessoa humana, vez que o sujeito como ente individualizado é flagrantemente mais fraco do que todo o aparato do Estado, podendo sofrer, em caso de um governo despótico, todo tipo de perseguição ou patrulha injustificada.
O direito à privacidade, além de proteger a pessoa dos arbítrios do Estado, também garante ao indivíduo a autodeterminação sobre si e a autogestão das informações a ele relacionadas. Nesse sentido, é possível afirmar que o titular do direito passa a ter controle das imagens, atos, gestos, ideias, assuntos e informações em geral, que poderão ser objeto da observação de terceiros.
Como exemplo marcante da violação desse controle, pedimos vênia para citar trecho do acórdão relatado pelo ex-ministro Menezes Direito (STF), quando ainda desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJ/RJ), presente na obra de Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco anteriormente mencionada, p. 288:
“(...) reconheceu direito a indenização, por ofensa à intimidade e à vida privada, postulado por artista, que viu publicada fotografia sua em revista de ampla circulação, sob a legenda que dizia – “como os artistas se protegem da AIDS”. Em outra manchete da mesma revista, o nome do artista era mencionado juntamente com outros artistas em título de reportagem que começava com os termos “a AIDS de...”. O caso se torna tanto mais expressivo porquanto, sob as manchetes apelativas, seguia-se um texto em que dizia da irritação de artistas com insinuações falsas de que sofriam da doença. O precedente, ainda que não explicitamente, aderiu ao repúdio às manchetes enganosas. O voto registrou que nenhum homem médio poderia espancar os seus íntimos sentimentos de medo e frustração, de indignação e revolta, de dor e mágoa, diante da divulgação de seu nome associado a uma doença incurável, (...) que tanto desespero tem causado à humanidade. E, mais, nenhum homem médio poderia conter tais sentimentos se, oferecido o desmentido, munido de atestado médico próprio, visse novamente, com divulgação ampliada pelo poder da televisão, o seu nome manipulado para a mesma associação. Acrescentou: “não é lícito aos meios de comunicação de massa tornar pública a doença de quem quer que seja, pois tal informação está na esfera ética da pessoa humana, é assunto que diz respeito à sua intimidade, à sua vida privada, lesando, ademais, o sentimento pessoal da honra e do decoro”. (Ap. 3.059/91, RT, 693/198).
Em que pese o ordenamento jurídico dar o merecido relevo à privacidade dos cidadãos, faz-se necessário dizer que não existe nenhum direito que não possa ser mitigado ou restringido em situações concretas. Não são raras as vezes que um fato da realidade contrapõe dois ou mais dispositivos de lei ou princípios constitucionais. Nesses casos, o intérprete da norma deverá sopesar os direitos e verificar qual deles deverá prevalecer.
O exemplo clássico dessa contraposição é o direito à liberdade de expressão com o direito à proteção da imagem. Ao mesmo tempo em que a Constituição Federal confere grau de direito fundamental à livre expressão da opinião, também o faz quanto ao direito de reparação em caso de mácula do bom nome ou da imagem de outrem. Nesse sentido, os operadores do Direito terão que sobrepor os valores, dando a cada qual sua devida dimensão, devendo um deles prevalecer no caso concreto, sem retirar; todavia, a validade do outro no sistema legal.
O mesmo pode ocorrer com o direito à privacidade. É possível que existam hipóteses nas quais o interesse público se sobreponha à privacidade do cidadão. Tais situações atingem figuras públicas em geral, tais como agentes políticos, administradores públicos e celebridades. Em razão da natureza da atividade que exercem, pessoas públicas submetem-se ao escrutínio popular, tendo, portanto, o espectro de sua privacidade diminuído. Com agentes políticos e administradores públicos a questão é ainda mais complexa, vez que elementos da vida privada do indivíduo são de interesse da coletividade, como por exemplo, sua evolução patrimonial.
Ressalte-se que a mitigação da privacidade não se dá exclusivamente para pessoas públicas; podendo também atingir pessoas comuns cujas atividades pouco impactam no andamento da sociedade. É o caso de pessoas que se encontram em lugares públicos ou em eventos privados, porém, de grande repercussão. Nesses casos, entende-se que pelas circunstâncias do ambiente, há um consentimento tácito do uso de sua imagem.
“Em princípio, se alguém se encontra em um lugar público está sujeito a ser visto e a aparecer em alguma foto ou filmagem do mesmo lugar. Haveria, aí, um consentimento tácito de exposição. A pessoa não poderia objetar a aparecer, sem proeminência, numa reportagem, se se encontra em lugar aberto ao público e é retratada como parte da cena como um todo”. (MENDES, Gilmar Ferreira e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet, “Curso de Direito Constitucional”, 14ª edição, 2019, p. 290).
Situação corriqueira dos dias atuais, o confronto entre a privacidade do cidadão e o direito à liberdade de informação também se apresenta. Os veículos de comunicação , a fim de difundir determinada notícia, em algumas ocasiões se utilizam de fotos, vídeos, áudios ou documentos de pessoas. Nesses casos, o intérprete da norma deverá analisar cada caso concretamente para aferir quais dos direitos deve prevalecer. A relevância da informação e da reportagem, bem como os meios de obtenção dos dados e a imprescindibilidade de sua divulgação deverão nortear os operadores do Direito na busca do valor preponderante.
“Em se tratando de conflito de pretensões à privacidade e à liberdade de informação, concorda-se que se analise a qualidade da notícia a ser divulgada, a fim de se estabelecer se a notícia constitui assunto legítimo de interesse do público. Deve ser aferido, ainda, em cada caso, se o interesse público sobreleva a dor íntima que o informe provocará”. (MENDES, Gilmar Ferreira e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet, “Curso de Direito Constitucional”, 14ª edição, 2019, p. 292).
A proteção da imagem , da privacidade e da honra fazem parte dos chamados direitos da personalidade. Tais direitos possuem autonomia própria, o que não significa dizer que são absolutos, podendo o cidadão dispor de sua aparência física ou de alguns elementos de sua vida privada voluntariamente, autorizando sua captação e difusão. Não resta dúvida que a Carta Constitucional de 1988 assegurou o livre exercício da comunicação, protegendo os veículos de comunicação de qualquer tipo de censura prévia; todavia, tal direito pode ser restringido pela própria CF/88 e demais leis infraconstitucionais, impedindo a publicação e a divulgação de alguma notícia que afete a intimidade e reputação da pessoa. Nessa hipótese, não devemos entender a mitigação da liberdade de expressão e comunicação como ato de censura, mas sim, como reação a ato abusivo que pode, eventualmente, apresentar caráter, calunioso, difamatório ou injurioso.
No que tange ao conflito entre os direitos à privacidade e o livre exercício do jornalismo, não podemos deixar de citar a ADPF nº 130, responsável por mudar o entendimento do STF no sentido da não recepção dos arts. 20, 21 e 22 da Lei de Imprensa pela CF/88. Na referida ação, arguiu-se que os artigos supra foram elaborados na vigência de um estado autoritário, que restringia as liberdades civis, dentre as quais, as de comunicação em especial, e que, portanto, sua manutenção no ordenamento jurídico contrariava os princípios democráticos trazidos pela Carta de 1988.
Em liminar de lavra do ex-min. Carlos Ayres Britto, determinou-se que os juízes de 1ª instâncias e Tribunais Superiores suspendessem os processos e os efeitos judiciais de decisões tomadas com base nos art. 20, 21 e 22 da Lei de Imprensa. Posteriormente, em decisão plenária, a Suprema Corte referendou a liminar e julgou procedente o pedido formulado, declarando os dispositivos da Lei 5.250/67 como não recepcionados pela nova ordem constitucional (ADPF 130/DF, rel. Min. Carlos Britto, j. 30/04/2009, cf. Informativo do STF nº 544, Brasília, 27 de abril a 1º de maio de 2008).
Lembremos que a não recepção dos artigos da Lei de Imprensa não torna impunes atos dolosos desconexos com a atividade jornalística. Caso algum veículo de imprensa fira a honra, imagem e bom nome de terceiros, o responsável pela reportagem responderá pelos crimes contra a honra contidos no Código Penal (arts. 138 a 140), com a causa de aumento de pena do art. 141, III (meio que facilite a divulgação da calúnia, difamação ou injúria). De igual sorte, o autor da ofensa poderá ser demandado na esfera cível em ação reparatória de dano moral e material (art. 927, CC).