Dando continuidade aos estudos referentes aos novos posicionamentos dos Tribunais Superiores em questões relacionadas ao Direito do Consumidor, no presente texto abordaremos tema polêmico que têm dividido o entendimento entre a 3ª e 4ª Turmas do Superior Tribunal de Justiça, referente ao dever da concessionária de serviço público em indenizar o consumidor em caso de cometimento de crime.
A divergência diz respeito ao caso de consumidora de transporte público concedido à iniciativa privada que sofreu assédio sexual durante a viagem. Nesse caso, teria a concessionária o dever de indenizar a passageira?
Pois bem, os ministros do STJ apresentam entendimentos conflitantes, porém, todos muito bem fundamentados na lei, jurisprudência e melhor doutrina.
A 3ª Turma firmou entendimento que a concessionária de transporte público tem o dever de indenizar a passageira que foi vítima de assédio durante a viagem, fundamentando seu posicionamento nos arts. 37, § 6º, CF; 14 e 22, CDC e 734 e 735, CC, in verbis.
Art. 37, § 6º, CF. As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
Art. 14, CDC. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos. (Grifos nossos).
Art. 22, CDC. Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.
Art. 734, CC. O transportador responde pelos danos causados às pessoas transportadas e suas bagagens, salvo motivo de força maior, sendo nula qualquer cláusula excludente da responsabilidade. (Grifos nossos).
Art. 735, CC. A responsabilidade contratual do transportador por acidente com o passageiro não é elidida por culpa de terceiro, contra o qual tem ação regressiva. (Grifos nossos).
De forma geral argumenta-se que nos contratos de transporte, o prestador de serviço, mediante recebimento do preço da passagem, obriga-se a transportar os passageiros de um ponto a outro de forma segura, protegendo a integridade física e psicológica de seus usuários.
Aludem os ministros da 3ª Turma do STJ à chamada “Cláusula de Incolumidade”, que estaria implicitamente presente em todos os contratos de transporte, no qual o fornecedor se responsabiliza pela segurança do passageiro até seu local de destino. Nesse sentido, nos ensina Sérgio Cavalieri Filho, citado por Márcio André Lopes Cavalcanti, em “Principais Julgados do STF e STJ Comentados”, 2020, p. 496:
“A característica mais importante do contrato de transporte é a cláusula de incolumidade que nele está implícita. A obrigação do transportados não é apenas de meio, e não só de resultado, mas também de segurança. Não se obriga ele a tomar as providencias e cautelas necessárias para o bom sucesso do transporte; obriga-se pelo fim, isto é, garante o bom êxito”.
Como histórico de entendimento da Corte, citamos o REsp 1.662.551-SP, de 15/05/2018, de relatoria da Min. Nancy Andrighi, que sustenta: “A concessionária de transporte ferroviário pode responder por dano moral sofrido por passageira, vítima de assédio sexual, praticado por outro usuário no interior do trem”.
Nota-se que os ministros da 3ª Turma entendem ter a concessionária de serviço público de transporte de pessoas responsabilidade objetiva por danos causados aos seus passageiros, salvo pela ocorrência de culpa de terceiro absolutamente independente ao transporte em si.
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Ou seja, a concessionária seria obrigada a indenizar o passageiro independentemente de ter agido com dolo ou culpa, salvo hipótese em que terceiro que não tenha nenhuma relação com o serviço de transporte seja o causador do dano; situação em que haveria o rompimento do nexo de causalidade e a consequente excludente de responsabilidade.
A doutrina equipara os danos causados por terceiros aos casos fortuitos, sendo estes subdivididos em casos fortuitos internos e externos. Haverá caso fortuito interno, sem rompimento do nexo de causalidade e excludente de responsabilidade da concessionária, quando estiver de alguma forma relacionado com a organização da empresa ou com riscos da atividade por ela desenvolvida, tal qual entende a 3ª Turma do STJ ao presente caso.
Por sua vez, haverá caso fortuito externo, com o rompimento do nexo de causalidade e causa da excludente de responsabilidade, quando não houver nenhuma ligação com a organização da empresa ou com o risco da atividade por ela desenvolvida, configurando-se como fato totalmente estranho ao produto ou serviço por ela oferecido.
Por outro lado, baseado no REsp 1.748.295-SP, de 13/12/2018, de relatoria dos Ministros Luiz Felipe Salomão e Marco Buzzi, que diz: “A concessionária de transporte ferroviário não responde por ato ilícito cometido por terceiro e estranho ao contrato de transporte”, a 4ª Turma do STJ entende que a concessionária de serviço público de transporte não tem o dever de indenizar passageira que foi vítima de crime durante a viagem.
Para os ministros que compõe a 4ª Turma, caso terceiro estranho à concessionária pratique crime dentro do vagão, estaremos diante de um caso fortuito externo, com rompimento do nexo de causalidade e com exclusão da responsabilidade. Independentemente da natureza do delito praticado, caso o autor não tenha nenhum vínculo com a empresa de transporte, ocorrerá o afastamento da responsabilidade de indenizar a vítima.
Ressalte-se que, para o afastamento da responsabilidade da concessionária, mesmo na hipótese de caso fortuito externo, faz-se necessária a comprovação de que a empresa não agiu de forma negligente, ou seja, comprove que foram adotadas todas as cautelas necessárias para propiciar ao passageiro uma viagem segura, tais como a colocação de câmeras de segurança e a contratação de agentes de plataforma.
Como histórico de entendimento da Corte, citamos os seguintes julgados, em Márcio André Lopes Cavalcanti, em “Principais Julgados do STF e STJ Comentados”, 2020, p. 500.
“A responsabilidade do transportador é objetiva, nos termos do art. 750 do CC/2002, podendo ser ilidida tão somente pela ocorrência de força maior ou caso fortuito externo, isto é, estranho à organização da atividade”. (STJ, 4ª Turma, AgRg no REsp 1.551.484-SP, Rel. Min. Antônio Carlos Ferreira, j. 18/02/2016)
“A responsabilidade do transportador em relação aos passageiros é objetiva, somente podendo ser ilidida por fortuito externo, força maior, fato exclusivo da vítima ou por fato doloso e exclusivo de terceiro – quando este não guardar conexidade com a atividade de transporte”. (STJ, 4ª Turma. REsp 974.138-SP, Rel. Min. Raul Araújo, j. 22/11/2016).
Como vimos, ambos os entendimentos são respeitáveis e encontram arcabouço legal, jurisprudencial e doutrinário. Todavia, tendemos a comungar com o posicionamento da 4ª Turma do STJ, no sentido do afastamento da responsabilidade da concessionária indenizar a vítima do crime durante a viagem, desde que observadas duas premissas.
A primeira delas diz respeito ao caso fortuito externo ou fato de terceiro absolutamente independente à organização da empresa ou do risco da atividade por ela desenvolvida. Nesse caso, não vislumbramos nenhuma forma de conexão entre a atividade criminosa e a atividade da concessionária, vez que o agente agiu de livre e espontânea vontade, utilizando-se do trem apenas como cenário do crime.
Não obstante, faz-se necessária a observância da segunda premissa, qual seja, a comprovação do dever geral de cautela pela empresa concessionária, consubstanciado em medidas concretas que contribuam para evitar o cometimento de crimes ou na identificação do agente criminoso, tais como a instalação de câmeras de monitoramento no interior doa vagões e nas plataformas e na contratação de agentes de segurança.
Por fim, devemos informar que, seja qual for o posicionamento adotado, o agente causador do crime será o responsável final pela indenização. Caso levemos em consideração o posicionamento da 3ª Turma, caberá ação regressiva da concessionária contra o autor do crime. Já no que concerne ao entendimento da 4ª Turma, mesmo não havendo responsabilização da concessionária, é efeito automático da condenação penal a fixação de valor mínimo reparatório pelos prejuízos causados à vítima, como também é dever do juiz ao proferir sentença criminal, conforme expressamente previsto no art. 387, IV, CPP.