Em meio à pandemia da Covid-19, os idosos, um dos grupos mais vulneráveis à doença, aguardam o fim de uma importante batalha judicial: querem saber se terão um respiro no pagamento de empréstimos consignados, em um momento de crise econômica. Em 20 de abril, a cobrança das parcelas desse tipo de crédito foi suspensa por um período de quatro meses por decisão do juiz Renato Coelho Borelli, da 9ª Vara Federal Cível de Brasília, para “garantir que os idosos, atingidos em maior número por consequências fatais do SARS-CoV-2, possam arcar com o custeio do tratamento médico necessário”.
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Entretanto, o Banco Central, um dos réus do processo, recorreu dizendo que a suspensão tiraria a liquidez das instituições financeiras “justamente nesse período de grave crise econômica causada pela pandemia”. A decisão de primeira instância foi derrubada no último dia 28 pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1), e no dia 30 o advogado Marcelo Mello Casado, autor da ação popular, entrou com recurso para tentar reverter a medida.
As parcelas dos empréstimos consignados são cobradas diretamente das aposentadorias e pensões pagas pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Por lei, o valor das parcelas não pode ultrapassar 30% do benefício, com uma margem adicional de 5% para despesas com cartão de crédito consignado. Como o desconto é feito em folha, os consignados são considerados de baixo risco para os bancos, por isso os juros são menores em relação a outras modalidades de crédito. Em março, havia 34,2 milhões de contratos ativos desse tipo de empréstimo em todo o país.
A enfermeira aposentada Eloa Maria Pimenta da Silva, de 80 anos, integra essa estatística. Moradora da zona leste de São Paulo, ela contraiu seu primeiro empréstimo consignado há 27 anos para ajudar a filha a estudar na Alemanha. Depois disso, foi emendando um empréstimo no outro, por exemplo, para conseguir pagar a reforma da casa. “Os juros eram baixos e era uma coisa certa porque já vinha descontado no holerite, não era de risco”, contou à Agência Pública.
Embora tenha de lidar com as insistentes ligações dos bancos oferecendo ainda mais empréstimos – várias vezes por dia –, ela decidiu parar há cinco anos. “Recebo muitas ligações, nossa. Até pelo celular. Não sei como eles têm meu número. Antigamente, começavam a ligar por volta das 10 horas, hoje em dia começam às 8 e vão até as 22 horas.”
Assim, todo mês ela vê parte significativa da sua renda ir embora em parcelas antigas. Eloa, que é solteira e mora sozinha, diz não aproveitar plenamente a velhice por conta do dinheiro que deixa de entrar. Ela acaba tendo de se organizar muito bem para poder fazer as coisas de que gosta. “Gosto de museu, cinema, teatro, parques, viagens e hotéis. Mas essas coisas são planejadas como se eu tivesse 19 anos”, relata.
Superendividados
Desde janeiro de 2017, a Ouvidoria do INSS recebeu quase 130 mil reclamações sobre empréstimos consignados feitos sem autorização. Já a plataforma consumidor.gov.br, que em agosto de 2019 se tornou referência para registro dessas ocorrências, contabiliza, desde então, outras 9,1 mil queixas sobre crédito consignado a beneficiários do INSS.
Segundo especialistas ouvidos pela Pública , a oferta abusiva desse tipo de crédito leva ao fenômeno do superendividamento. Segundo o Banco Central, as dívidas de aposentados e pensionistas do INSS no crédito consignado bateram recorde em 2019: ao todo, somaram R$ 138,7 bilhões, o que representa 11% de aumento em relação a 2018.
“Superendividado é aquela pessoa que é totalmente incapaz de cumprir com as suas necessidades básicas, suas despesas atuais e futuras com sua capacidade financeira de momento”, explica o defensor Thiago Basílio, do Núcleo de Defesa do Consumidor (Nudecon) da Defensoria Pública do Rio de Janeiro. Ou seja: é aquele que “está de boa-fé, mas não consegue pagar suas dívidas”.
O problema é tão grande que em 2005 o órgão foi o primeiro a instituir uma Comissão de Superendividamento, que serviu de inspiração para outros defensorias de outros estados. Um estudo sobre o perfil dos assistidos pela Comissão – publicado em 2018 com informações coletadas de 2012 a 2017 – revela que a maioria das pessoas que recorreu ao serviço (64,13%) tinha mais de 55 anos, sendo que 18,48% estavam na faixa de 55 a 59 anos, e 29,35%, na faixa dos 70.
A modalidade de crédito mais utilizada pelos consumidores superendividados foi, de longe, o consignado (41,8%), seguido pelo cartão de crédito (18,4%) e pelo empréstimo pessoal (6%).
Segundo Basílio, o crédito consignado é o “maior produtor de superendividamento”. “Primeiro: se a pessoa pega o consignado porque já não tinha condições de cumprir com suas despesas tendo 100% da renda, imagina com 70%. Segundo porque as prestações são longas, se estendem pelo tempo, então a pessoa convive com a renda reduzida e vai se enrolando cada vez mais.”
Para o defensor, além do assédio praticado pelos bancos, falta informação. “É isso que temos visto acontecer com os idosos: o banco se aproveitando de sua hipervulnerabilidade para oferecer um produto viciado ou mesmo um produto com falha no dever de informação. Ao contrário de dar informação em dobro, dão a informação de menos, exatamente para que o idoso acabe fazendo a contratação sem conhecer o produto”, critica Basílio.
O defensor Fabio Brasil, que também atua na Comissão de Superendividamento, lembra que os idosos hoje são, muitas vezes, o esteio econômico da família. “Por ter uma fonte de renda certa, eles têm acesso a crédito, tanto consignado quanto pessoal”, destaca. “Muitas vezes, o idoso, para se inserir na família e se sentir importante e valorizado, busca remunerar de alguma forma os entes familiares.”
Assim, quando finalmente podem desfrutar da aposentadoria, os idosos acabam abrindo mão dos próprios planos para ajudar filhos e netos, explica Sérgio Serapião, líder do movimento Lab60+, que atua na área de longevidade. “Imagina uma pessoa de 70 anos que está em sua plena capacidade e sofrendo invisibilidade social? Qualquer que seja a possibilidade de se sentir útil, ela vai agarrar. Quando chega a oferta do crédito consignado, acaba sendo essa falsa salvação.”
Bancos investigados por atuação abusiva
Os empréstimos consignados estão na mira do Ministério da Justiça desde o ano passado, segundo documentos aos quais a Pública teve acesso. A Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), do Ministério da Justiça, está investigando dez grandes bancos para apurar a “exploração da hipervulnerabilidade do idoso”, “possíveis abusos” e “violação de dados pessoais” na concessão de crédito consignado a aposentados.
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As investigações, instituídas em julho do ano passado, têm como base dados da Ouvidoria do INSS sobre reclamações relacionadas a operações de empréstimo de 2017 a junho de 2019. Os alvos são as dez instituições sobre as quais houve mais queixas desse tipo, entre as quais o Banco Pan é o campeão, seguido por Itaú Consignado, Cetelem e BMG.
O Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor (DPDC), da Senacon, traz extensos relatórios de reclamações e ações judiciais em que as instituições aparecem como réus. Uma delas foi movida no Juizado Especial Cível de Colinas do Tocantins (TO) contra o Itaú Consignado por uma idosa analfabeta, que recebeu empréstimo de R$ 2.333,09. Segundo a senhora, o seu benefício sofria descontos de empréstimos consignados, mas ela não se recordava de ter contratado. E nunca tinha recebido uma cópia do contrato. A juíza condenou o Itaú a restituir em dobro o valor das parcelas pagas pela vítima com juros de 1% ao mês e correção monetária “uma vez que a má-fé da instituição financeira restou caracterizada pela falta de comprovação de contrato escrito e pela abusividade ao estabelecer contato com a parte autora”.
O DPDC tem estudado medidas para corrigir práticas abusivas dos bancos por meio dos cartões de crédito consignados. No último dia 27, o órgão publicou nota técnica recomendando à Federação Brasileira de Bancos (Febraban) e à Associação Brasileira de Bancos (ABBC) que incluam o produto em seu sistema de autorregulação que trata do crédito consignado, em vigor desde 2 de janeiro.
A nota técnica do DPDC conclui que, da forma como é comercializado, o cartão de crédito consignado tem sofrido um “desvirtuamento” de sua real finalidade, que é a compra de serviços e bens. “A ideia original era oferecer um cartão de crédito a um público que, de outra forma, não teria acesso a esse produto. O pagamento via consignação favoreceria isso. Na prática, entretanto, o que se verificou foi o uso do produto como um mecanismo de concessão de nova linha de empréstimos, mediante saques, e não como cartão de crédito de fato”, explica Juliana Domingues, diretora do DPDC.
“A nota técnica reconhece que há simulação e práticas abusivas que devem dar margem a sanções administrativas. É o que eu espero agora da Senacon”, declara Luiz Fernando Miranda, coordenador do Núcleo de Defesa do Consumidor (Nudecon) da Defensoria Pública de São Paulo. Domingues afirma que “sem nenhuma dúvida essa é uma de suas finalidades” do levantamento.
Regulamentação avança, mas falta lei
No fim de 2018, o INSS
mudou as regras do crédito consignado na tentativa de tornar mais rígido o controle de suas operações. Desautorizou os bancos a oferecer empréstimos ou cartões de crédito consignado por pelo menos seis meses a idosos que acabaram de se aposentar; e proibiu que aposentados busquem empréstimos num período de três meses a partir da data de concessão da aposentadoria.
Em janeiro deste ano, entrou em vigor a autorregulação criada pela Febraban e ABBC. Ela estabelece que as instituições devem enviar aos seus clientes, de forma clara, informações mínimas sobre os empréstimos, como valor total, quantidade e preço de cada parcela, canais de atendimento e data e número do contrato. Traz também a possibilidade de que o cliente desista do empréstimo em até sete dias úteis a partir do recebimento do dinheiro e devolva o valor. Criaram a plataforma online “Não me Perturbe”, na qual clientes podem bloquear ligações de oferta de crédito consignado.
“Foi o próprio sistema dos bancos, percebendo que algumas práticas estavam abusivas, que tentou se autorregular, até para dizer que tem alguma regulamentação, porque, se não tivesse, viria de outro lugar”, salienta Renata Reis, coordenadora de atendimento da Fundação de Proteção e Defesa do Consumidor de São Paulo (Procon-SP).
No entanto, questões cruciais foram deixadas de fora, de acordo com especialistas ouvidos pela Pública. Além da regulamentação do cartão de crédito consignado, eles citam a possibilidade de contratação do consignado por telefone.
Quem trabalha com o tema considera que só mesmo uma lei para consolidar esses esforços. A menina dos olhos é o Projeto de Lei (PL) 3.515, de 2015, pronto para votação em comissão especial da Câmara dos Deputados. A proposta proíbe o assédio ao consumidor para que tome crédito por telefone, e-mail ou qualquer outra forma, principalmente se ele for idoso, analfabeto, doente ou em estado de vulnerabilidade agravada.
A economista Ione Amorim, coordenadora do Programa de Serviços Financeiros do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), diz que é urgente a aprovação do PL. “É uma lei que visa disciplinar a oferta de crédito, prevenir o superendividamento e criar mecanismos de tratamento para as pessoas que já carregam esse histórico, que muitas vezes foi por contratar crédito por pressão.”
Enquanto isso, em meio à pandemia, os aposentados contam apenas com as medidas já anunciadas pelo INSS: uma instrução normativa publicada pelo INSS em março reduziu a taxa dos empréstimos consignados de 2,08% para 1,8% ao mês e aumentou o prazo de pagamento de 72 para 84 meses. O governo prometeu também ampliar o percentual da renda de aposentados que pode ser comprometida por empréstimos consignados; a medida está em estudo. Ou seja: mais prazo e a possibilidade de tomar ainda mais dinheiro emprestado.
“Adotou-se medidas oportunistas para conceder mais crédito”, critica Ione. De acordo com ela, muitos idosos são, “diante dos impactos da crise, a única fonte de renda estável de muitas famílias”, por isso deveria ter partido das próprias instituições financeiras uma atitude de “acolhimento desses consumidores”. “Cadê a responsabilidade social dos bancos? E não é a responsabilidade de fazer doação de recursos para saúde – isso está ao alcance de todas as grandes empresas que têm margem de lucro. Estamos falando de medidas efetivas dentro do próprio setor”, argumenta.
Será que idosos vão ficar livres de pagamentos na pandemia?
Dar um respiro aos idosos no pagamento de empréstimos consignados durante a pandemia é um dos objetivos da ação popular ajuizada em 14 de abril pelo advogado Marcio Mello Casado, de São Paulo. Ela tem como alvo, também, o presidente do Banco Central, Roberto de Oliveira Campos Neto, e a União.
Casado contou à Pública que decidiu apresentar a ação popular porque o Banco Central, ao tomar medidas para aumentar a liquidez do mercado durante a crise, não determinou expressamente como os bancos deveriam agir para fazer esse dinheiro chegar a quem mais precisa. “Na hora em que esse dinheiro entra no mercado financeiro, a gente não vê os bancos dando essa contrapartida esperada pelo Banco Central”, afirma.
“Minha intenção não é ditar política econômica – nem tenho capacidade para isso, cabe aos técnicos do Banco Central. A minha intenção é que ele escreva em seus normativos sua real intenção, porque, se deixar isso ao arbítrio dos bancos, a gente está vendo que eles não cumprem”, argumenta o advogado, que aguarda o julgamento do recurso.
Luiz Legñani, secretário-geral da Conferência Brasileira de Aposentados, Pensionistas e Idosos (COBAP), diz que os aposentados aprovam a suspensão da cobrança e que muitos deles têm entrado em contato para confirmar se a medida já está valendo. “Um valor de 30% benefício é descontado [com os empréstimos], então facilitaria porque, durante quatro meses, os aposentados teriam um dinheiro a mais para comer melhor e comprar medicamentos”, defende. “A aposentadoria já é pouca e os gastos são muitos, principalmente com saúde, porque os idosos sofrem mais com doenças e gastam muito com isso.”
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Legñani lembra ainda que a responsabilidade dos aposentados não é apenas sobre si. “Não é só o casal de idosos que vive em casa, a maioria ajuda filhos e netos, principalmente agora que está havendo perdas de emprego”, destaca.