Depois de quase dois anos de negociação e passados seis meses da aprovação do acordo , Boeing e Embraer anunciaram, nesta quinta-feira (23), o nome de sua empresa conjunta para a aviação comercial: Boeing Brasil.
A marca Boeing Brasil – Commercial , que exclui o tradicional nome da Embraer, faz jus ao termos da parceria acertada entre as aéreas, colocando a Boeing como agente principal da nova empresa – uma vez que a norte-americana controlará 80% desse negócio, deixando apenas 20% com a brasileira.
A retirada do nome da Embraer da nova marca vai de encontro com a opinião do coordenador do Laboratório de Estudos das Indústrias Aeroespaciais e de Defesa da Unicamp, Marcos José Barbieri Ferreira, que diz não se conformar com a perda da companhia brasileira .
Para ele, o acordo Boeing-Embraer , ainda que alcance apenas a parte comercial da brasileira, representa o "desmonte" da terceira maior companhia aérea do mundo, que é a "única de defesa brasileira" e que já atua há quase 50 anos com "sucesso e tecnologia de ponta".
Ferreira não é voz solitária. Além dele, outras entidades e representantes da sociedade questionaram essa parceria entre as empresas de aviação. Logo após o anúncio oficial do acordo, sindicatos de metalúrgicos e deputados do Partido dos Trabalhadores (PT) moveram ações contra a fusão, uma vez que entendiam que o projeto brasileiro estava sendo "entregue" aos norte-americanos .
O próprio presidente da República, Jair Bolsonaro (PSL), chegou a cogitar vetar o acordo, por entender que ele punha em risco "a soberania nacional", já que a aérea é um "patrimônio" do Brasil . Na época, ele quase proibiu a fusão por meio da chamada golden share – ação que dá ao governo o direito de proibir algumas mudanças na companhia. Depois, voltou atrás.
De filé mignon a montadora
A criação da Boeing Brasil – Commercial acontece a partir da área comercial da Embraer, que teve 80% de seu controle entregue à Boeing. Para o professor da Unicamp, esse setor que será vendido é justamente o que ele chama de o "filé mignon" da Embraer.
De acordo com Ferreira, desde meados de 2006 até os últimos anos, a Embraer detém cerca de 60% das encomendas do mercado de jatos comerciais de 70 a 130 assentos, o que gera mais ou menos 90% do lucro total da empresa. "Sendo assim, eu tirar a área comercial significa desestruturar a companhia: ela vai perder 60% da empresa e 90% do lucro. Isso já é o suficiente para dizer que esse acordo não vale a pena", afirma.
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O professor também diz lamentar a perda de autonomia da Embraer para a tomada de decisões e desenvolvimento de modelos. Ele ressalta que a empresa, que tem todos os setores integrados, como acontece "em todas as grandes companhias do mundo", será dividida, o que inevitavelmente causará perdas na sua capacidade. "Você rompe a estrutura de desenvolvimento da Embraer, a capacidade de desenvolver tem uma pespectiva de perda muito significativa", pontua.
Para ele, a aérea brasileira tende a se tornar uma fábrica da Boeing . "No Brasil, vai ficar algo mais complementar, dificilmente voltaremos a projetar ou desenvolver aqui. A Boeing, dentro da estratégia dela, vai olhar pra unidade brasileira como uma fábrica a mais. Eles vão decidir o que produzir aqui: para quem fazer, como fazer, o que desenvolver... Tudo vai ficar centralizado na Boeing", explica. "A Embraer deve se tornar muito mais parecida com uma montadora de automóvel", completa.
Institucionalmente, a Embraer destaca que a joint venture com a Boeing prevê a criação de uma nova companhia "focada na produção, desenvolvimento e comercialização de aeronaves comerciais, mas que as áreas da Aviação Executiva, Defesa e Segurança, Aviação Agrícola e os serviços relacionados a essas unidades de negócio não fazem parte da parceria estratégica com a Boeing".
Empresa privada
Para Guilherme Amaral, sócio do escritório ASBZ Advogados e especializado em Direito Aeronáutico, no entanto, a parceria com a norte-americana não deveria fazer parte de uma discussão tão grande para o País, uma vez que se trata de uma empresa privada . "O negócio que foi feito é essencialmente privado, então essa insistência em procurar o que o Brasil ganha ou perde não faz muito sentido. Quem ganha ou perde são os acionistas", afirma.
Uma das justificativas, inclusive, para o acordo entre as aéreas, é a de que a Embraer não conseguiria se segurar no mercado financeiro agora que outras duas gigantes da aviação, Airbus e Bombardier , também se uniram.
"É difícil dizer com certeza [se a Embraer seria prejudicada financeiramente], mas é muito provável que tivesse dificuldades grandes para lidar com a concorrência de Airbus e Bombardier juntas, outros players que estão crescendo", diz. Além disso, Amaral pontua que, se não houvesse acordo com o Brasil, provavelmente a Boeing também entraria como competidora da Embraer, "com desenvolvimento próprio ou se aliando a algum outro player", o que também poderia prejudicar as contas da Embraer.
Para ele, a brasileira "ganha certa proteção e força" com a parceria para lidar com crises que, no futuro, "poderiam ameaçar a continuidade de seus negócios". "Parece ser bom para as duas empresas. A Boeing ganha um portfólio mais completo de produtos e a Embraer ganha muito mais acesso ao mercado global, mais musculatura para enfrentar a competição."
Também especialista em Direito Aeronátuico, Felipe Bonsenso Veneziano, associado do Pinheiro Neto Advogados, concorda. Para ele, a fusão faz com que a Embraer se posicione melhor no mercado e tenha "maior penetração entre os clientes". "Além disso, a transação vai permitir uma questão até de investimentos. A Embraer no Brasil, que vai ser basicamente de jatos privados, terá recursos para produzir em pesquisa, tecnologia e desenvolvimento dos produtos", diz.
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Os argumentos dos advogados, no entanto, não convencem o professor da Unicamp. "É verdade que a Embraer provavelmente perderia mercado. Ninguém consegue manter 60% das encomendas para sempre", reflete. "Mas isso não quer dizer que a empresa precisaria deixar de existir. Uma coisa é perder um pouco de mercado, mas continuar sendo grande. A outra é dizer que você não tem condições de existir nesse mercado. E a Embraer tem."