Demonizar ou glorificar a meritocracia é perder o foco da discussão
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Demonizar ou glorificar a meritocracia é perder o foco da discussão


A última  lista da Forbes dos mais jovens bilionários do mundo deu o que falar. Segundo a revista, pela primeira vez em 15 anos, todos os bilionários com 30 anos ou menos são herdeiros. Na lista, estão os herdeiros da Ray-Ban, Weg, o grupo Tata (indiano), a fabricante de aviões Dassault, e outros conglomerados menos conhecidos por nós, brasileiros. Claro, essa lista fez, novamente, acender o debate sobre os méritos da meritocracia. Afinal, o que fizeram esses bilionários, a não ser nascerem em berço de ouro?

O outro lado do espectro nessa discussão costuma atribuir tudo ao mérito. Normalmente, busca-se histórias de pessoas humildes que subiram na vida como demonstração cabal de que, quem quer, faz, e quem não quer, fica chorando pela ajuda do governo.

A questão, como sempre acontece, é que este assunto não é preto ou branco, mas uma palheta com muitos tons de cinza. Há o mérito e há também as condições iniciais. Ambos os fatores convivem em cada ser humano. Costumo representar essa relação no seguinte gráfico:

Condições finais x condições iniciais
Gráfico
Condições finais x condições iniciais


Cada bolinha branca representa um indivíduo, plotado no gráfico “condições finais x condições iniciais”. Assim, temos a riqueza final como função da riqueza inicial. A linha pontilhada vermelha é a correlação entre essas duas riquezas. É inegável que existe uma correlação entre condições finais e condições iniciais. Uma pessoa que tem condições de estudar nas melhores escolas e recebe um empurrãozinho no início de sua carreira via um network que herdou de sua família, tende a ter condições finais melhores do que alguém que nasce em uma favela. A lista dos jovens bilionários é somente o extremo dessa constatação óbvia.

A questão é que também existe o mérito. Voltemos ao gráfico acima. Os pontos vermelho e verde representam dois indivíduos com exatamente as mesmas condições iniciais. No entanto, as suas condições finais são muito diferentes. Por que? Mérito. O indivíduo representado pelo ponto verde trabalhou melhor com as suas condições iniciais do que o indivíduo representado pelo ponto vermelho. O indivíduo do ponto verde trabalhou tão bem, que conseguiu compensar as suas condições iniciais piores em relação ao indivíduo do ponto azul, terminando com as mesmas condições finais. Ou seja, se fosse somente pelas condições iniciais, os indivíduos dos pontos verde e azul deveriam terminar suas vidas com riquezas muito diferentes, sobre a linha pontilhada vermelha. Mas o mérito do indivíduo verde e o “demérito” do indivíduo azul fizeram com que ambos terminassem nas mesmas condições. Seus descendentes iniciarão o novo ciclo nivelados, pelo mérito e demérito de seus pais.

Nesse sentido, é o mérito (ou a falta dele) que permite, ao longo do tempo, a mobilidade social. Se eu sou uma pessoa que ultrapassa os limites impostos pelas minhas condições iniciais, meus descendentes terão condições iniciais melhores do que se eu não tivesse mérito. E vice-versa. A  lista da Forbes que inclui os indivíduos de todas as idades é uma demonstração cabal desse fato. Dos 100 indivíduos mais ricos do mundo, somente 23 são herdeiros de 16 grupos empresariais. Ou seja, se 100% dos bilionários com menos de 30 anos são herdeiros, esse número cai para 23% se contarmos os indivíduos de todas as idades. Essa é uma demonstração de que o mérito não é algo que se demonstra de maneira imediata, é muito difícil que jovens com menos de 30 anos sejam bilionários por mérito próprio. Mas, na medida em que o tempo vai passando, o mérito vai tomando o lugar das condições iniciais para determinar quem será bilionário.

Uma outra forma de constatar este ponto é observar a lista dos indivíduos mais ricos do passado. Consta que John D. Rockfeller foi o homem mais rico de todos os tempos, com uma  fortuna superior a US$ 300 bilhões ajustado pela inflação. Rockfeller faleceu em 1937, e podemos nos perguntar: onde estão os seus herdeiros na lista dos mais ricos? Não estão. A fortuna de Rockfeller foi se desfazendo ao longo do tempo, nas mãos de herdeiros ineptos, o que é normalmente o que acontece. Não que eles estejam passando por necessidades, mas estão longe de serem bilionários.

Essa dinâmica do topo da pirâmide ocorre em todos os estratos sociais. As pessoas são o resultado de um misto de condições iniciais e mérito próprio. É ociosa a discussão sobre qual fator é o mais importante para o resultado final. Mesmo porque, as condições iniciais incluem não somente a riqueza material, mas também características próprias que cada indivíduo herda, como a inteligência, problemas psicológicos e a própria estrutura familiar, e que podem não ter correlação direta com a renda. Assim, atribuir ao mérito ou às condições iniciais o sucesso ou o fracasso de um indivíduo é algo muito complexo.

Por fim, nesse tipo de discussão sempre se coloca o problema do quê os governos poderiam fazer para mitigar as diferenças nas condições iniciais. Educação básica de boa qualidade é sempre a resposta óbvia, ainda que educação não seja tudo quando se fala de condições iniciais. Mas já é um bom começo, assim como proporcionar saneamento e saúde em nível básico.

Uma outra forma de intervenção, mais polêmica, seria simplesmente taxar a transmissão de fortunas. No limite, um imposto de 100% sobre heranças (confisco) faria com que houvesse um nivelamento automático das condições iniciais, pelo menos em termos de patrimônio. Mas, lembre-se, não é só de dinheiro que se trata. Um herdeiro pode começar a trabalhar na empresa do pai muito antes de receber a herança, o que já lhe deixa em situação inicial melhor do que a média daqueles que não têm um pai bilionário. Ou, pode aproveitar-se do network resultante da fortuna da família para fazer a sua própria fortuna, se tiver capacidade para isso. Enfim, nada é tão simples quanto parece.

As diferenças de patrimônio e renda entre os indivíduos desafiam esquemas simplistas e palavras de ordem vazias. Atacar as causas das desigualdades nas condições iniciais sem demonizar o mérito, que é o combustível do capitalismo , é o desafio que se impõe a todos aqueles que se preocupam com o tema.

** Marcelo Guterman é engenheiro de produção pela Escola Politécnica da USP e Mestre em Economia e Finanças pelo Insper. Possui o certificado CFA – Chartered Financial Analyst. Ministrou vários cursos de finanças ao longo dos últimos 35 anos, incluindo Gestão de Investimentos no programa do MBA de Finanças do Insper. Atuou em várias multinacionais de administração de fundos de investimento nas últimas décadas, como gestor de recursos e especialista de investimentos. É autor dos livros “Finanças do Lar” e “Descomplicando o Economês".

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