Os seus direitos são proporcionais ao quanto você desembolsa
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Os seus direitos são proporcionais ao quanto você desembolsa


Por motivos familiares, passei uma semana na Espanha. Escrevo este artigo no voo de volta, enquanto aguardo o lauto jantar a ser servido em instantes. Mal posso esperar a atenciosa aeromoça perguntando “pollo ou pasta”, anunciando o menu especialmente preparado para ultrapassar as nossas expectativas, se você sabe onde colocá-las.

Nos assentos ao lado, um casal de meia idade está sentado ao lado de uma senhora dos seus 40 anos. Vou chamar a senhora dos seus 40 anos de Margot, somente para tornar o texto mais fluído. Margot conversa animadamente com a mulher de meia idade, naquelas amizades fugazes que une estranhos em um avião, enquanto o senhor de meia idade somente observa, com enfado visível e crescente. Margot domina a conversa, a ponto de encobrir o choro dos vários bebês a bordo. Estou lendo um livro, e tento não escutar, o que é uma tarefa cada vez mais difícil. Os assuntos são dos mais variados, desde o seu trabalho, passando por sua família até suas experiências com voos. Em determinado momento, Margot borda o raciocínio que serviu de inspiração para esse artigo.

Segundo Margot, ela não era de uma família rica, mas seus tios tinham posses e voavam de Varig. Aquilo sim era uma companhia aérea, e não essas latas de sardinha atuais. Margot conta que sua avó, na primeira vez que voou (coisa recente), decepcionou-se sobremaneira, pois achava que os aviões eram muito mais luxuosos, dadas as histórias contadas por sua irmã. Na Varig, pelo contrário, os talheres eram de metal e a companhia fornecia até as mamadeiras dos bebês (imagino que, por isso, não haveria choro de bebês nos aviões da Varig). Tive uma vontade quase irresistível de interromper a conversa para dizer a frase que Margot certamente acharia de muito mal gosto, mas que traria a conversa para o árido campo da lógica econômica. A frase seria: “por isso que a Varig quebrou”.

A Varig era de um tempo em que voar era coisa de rico. Foi atacada por dois flancos: por cima, pela TAM, e por baixo, pela Gol. A TAM oferecia um serviço premium pelo mesmo preço da Varig, enquanto a Gol oferecia um serviço básico por um preço bem menor. Quando a Varig desapareceu, TAM e Gol convergiram, e hoje oferecem serviços semelhantes, tornando-se um duopólio de fato, com a Azul sendo a companhia desafiante em um distante terceiro lugar. Mas não é sobre a indústria de aviação que gostaria de falar, e sim, sobre um conceito mais genérico, usando a indústria de aviação como exemplo: o fato de que as empresas precisam ser viáveis economicamente para que possam cumprir a sua missão. Esta verdade, tão óbvia, não é assim tão óbvia para a maioria das pessoas.


Claro, todos queremos pagar o mínimo e recebero máximo. Isso vale para qualquer produto ou serviço. O céu só não é o limite porque as empresas precisam ser viáveis economicamente. Como não temos acesso à contabilidade das empresas, sempre achamos que as companhias podem fazer mais do que estão fazendo. Só não o fazem porque estão focadas em maximizar os seus lucros às custas de produtos/serviços de segunda categoria. Essa tensão entre a empresa e o consumidor é tanto mais problemática quanto mais estamos convencidos de que temos direito quase divino a receber o melhor tratamento a custos módicos.

As empresas se esforçam para vender a ilusão de que seu produto/serviço vale muito mais do que o preço pago. É assim com a companhia lowcost em que estou voando. A passagem era a mais barata, e incluía a refeição a bordo “de graça”. No entanto, tive que pagar tarifas extras para marcar os assentos, despachar minha mala e comprar os fones de ouvido, tão úteis para evitar ouvir a conversa da Margot. Fiz as contas, e mesmo com esses custos extras, as passagens foram as mais baratas. O segredo está na otimização: fui muito mais cuidadoso na montagem da minha bagagem do que seria se duas malas estivessem incluídas no preço, o que, multiplicado por 250 passageiros, deve significar alguma economia significativa de combustível.

Mas o ponto é que o consumidor precisa estar ciente de que está viajando na classe econômica de uma companhia lowcost e, portanto, não terá direito a talheres de metal ou mamadeiras. Reclamar um tratamento mais luxuoso é desconhecer a realidade econômica de suas próprias escolhas. A nostalgia de um tempo que não volta mais não passa de uma ilusão. O preço era outro, e o serviço era acessível somente aos mais afluentes. Hoje, voar está ao alcance da classe média (e classe média, no Brasil, acredite se quiser, é quem tem renda de R$ 5 mil ou mais) porque as indústrias aérea e financeira (10 vezes sem juros, lembre-se) evoluíram para incluir um número maior de pessoas. Mas, lembre-se, não existem milagres: pouco dinheiro compra coisas de má qualidade. Quer coisas de qualidade melhor? Desembolse mais. A lógica do capitalismo é cruel.

Não somos titulares de direitos por um decreto divino. Os nossos direitos são proporcionais ao quanto desembolsamos por eles. Tenha isso em mente quando comprar passagens na parte econômica da aeronave.

** Marcelo Guterman é engenheiro de produção pela Escola Politécnica da USP e Mestre em Economia e Finanças pelo Insper. Possui o certificado CFA – Chartered Financial Analyst. Ministrou vários cursos de finanças ao longo dos últimos 35 anos, incluindo Gestão de Investimentos no programa do MBA de Finanças do Insper. Atuou em várias multinacionais de administração de fundos de investimento nas últimas décadas, como gestor de recursos e especialista de investimentos. É autor dos livros “Finanças do Lar” e “Descomplicando o Economês".

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