Amos Tversky e Daniel Kahneman em foto da década de 1970
Barbara Tversky
Amos Tversky e Daniel Kahneman em foto da década de 1970

Em 1979, os psicólogos e pesquisadores israelenses Daniel Kahneman e Amos Tversky publicaram um artigo na revista Econometrica chamado “ Prospect Theory: an analysis of decision under risk ” (Teoria da Perspectiva: uma análise da tomada de decisão sob condições de risco, em tradução livre). Este artigo renderia a Kahneman (Tversky faleceu em 1996) o Prêmio Nobel de Economia de 2002 (mesmo sendo psicólogo!) e seria o marco inicial do que se convencionou chamar de Finanças Comportamentais.

O desafio não era pequeno. Tratava-se nada menos do que colocar em xeque os fundamentos da Moderna Teoria dos Portfólios (MPT, na sigla em inglês), a primeira sistematização acadêmica da ciência do investimento, levada a cabo por Henry Markowitz em 1952, e depois aperfeiçoada por William Sharpe em 1964, ambos ganhadores do prêmio Nobel de economia de 1990. Em resumo, Markowitz modelou o comportamento dos ativos através da famosa fronteira eficiente dos ativos com risco, e modelou o comportamento dos investidores através de uma “função utilidade” que assumia que os investidores eram racionais, ou seja, exigiam mais retorno para cada unidade de risco adicional. A coisa, obviamente, é bem mais complexa do que isso, mas para os fins desse artigo, essa breve descrição basta.

O busílis está na definição de risco. Markowitz e Sharpe assumem que o investidor vê o risco dos ativos através do desvio-padrão de seus retornos, o que no mercado financeiro chamamos de “volatilidade”. Assim, ativos mais arriscados teriam maior volatilidade, enquanto ativos menos arriscados teriam menor volatilidade. A grande vantagem dessa abordagem é que é facilmente “planilhável”. A coisa mais fácil do mundo é calcular o desvio-padrão de uma série de retornos, assumindo que os retornos dos ativos assumem uma distribuição normal. Essa hipótese, como sabemos, está longe de valer para os ativos financeiros, que não cansam de nos “surpreender” com suas “caudas gordas”, nome técnico para retornos muitos desvios-padrão abaixo da média, impossíveis de prever a partir de uma curva normal.

Mas Kahneman e Tversky vão desafiar o outro lado da MPT: o comportamento do investidor. A função utilidade usada por Markowitz é simétrica, o que significa dizer que o investidor racional se comportará da mesma maneira tanto no campo dos ganhos como no campo das perdas. Natural que assim seja, dado que a distribuição normal dos retornos dos ativos em uma distribuição normal é simétrica em torno da média. Na verdade, essa discussão nem se coloca na MPT. Afinal, Markowitz trabalha com a expectativa de retorno, que é sempre positiva e proporcional ao risco (volatilidade) do ativo. O investidor racional nunca investiria em um ativo com expectativa negativa de retorno. Trata-se de um problema que simplesmente não se coloca na MPT.

Mas este não é o mundo real. No mundo real, os investimentos “dão errado”. E é quando “dão errado”, que o investidor deixa de ser racional. Esse é o cerne da Prospect Theory, que depois daria origem a toda uma série de estudos sobre os desvios de comportamento do investidor racional.

Kahneman e Tversky, como bons psicólogos, desenvolvem a sua teoria com base em “experimentos humanos”. O seu artigo na Econometrica é agradável de se ler, o que não é nada comum em artigos ganhadores do Nobel de Economia, provavelmente porque não foi escrito por economistas. Um dos meus experimentos prediletos do artigo é justamente o que trata da assimetria de comportamento quando se trata de ganhos e perdas. Os autores propõem o seguinte jogo:

Jogo 1

Alternativa 1: 80% de chance de ganhar 4.000 e 20% de chance de ganhar zero ou

Alternativa 2: 100% de chance de ganhar 3.000

Os respondentes precisaram escolher uma das duas alternativas. Note que a esperança de retorno da primeira alternativa é de 3.200 (4.000 x 80% + zero x 20%), enquanto a esperança de retorno da segunda alternativa é de 3.000 (3.000 x 100%). Aqui estamos no mundo de Markowitz: a primeira alternativa tem mais risco (desvio-padrão diferente de zero) e expectativa de retorno maior do que a segunda alternativa. No experimento conduzido por Kahneman e Tversky, 20% dos respondentes escolheram a primeira alternativa enquanto 80% escolheram a segunda. Essa proporção mudará de acordo com a aversão a risco dos respondentes e a expectativa de retorno. Se mudarmos a alternativa 2 para um ganho de 2.000, certamente alguns respondentes com menor aversão a risco migrarão para a alternativa 1. Mas, de qualquer modo, temos aqui a clássica função utilidade do investidor racional de Markowitz.

A coisa começa a ficar interessante quando os pesquisadores invertem a questão:

Jogo 2

Alternativa 1: 80% de chance de perder 4.000 e 20% de chance de perder zero ou

Alternativa 2: 100% de chance de perder 3.000

Neste mundo de ponta-cabeça, o resultado foi o inverso: nada menos do que 92% dos respondentes escolheram a alternativa 1, enquanto apenas 8% escolheram a alternativa 2. O bizarro desse resultado fica claro quando calculamos o valor esperado de cada alternativa: na alternativa 1, a esperança de retorno é de -3.200 (-4.000 x 80% + zero x 20%), enquanto o retorno esperado da alternativa 2 é menos pior, -3.000 (100% x -3.000). Além disso, do ponto de vista de risco, a alternativa 2 também é melhor, pois tem desvio-padrão zero, menor, portanto, que a volatilidade da alternativa 1. Assim, apesar de a alternativa 2 ter esperança de retorno maior e risco menor, foi amplamente abandonada pelos respondentes, que correram para a alternativa com menor retorno e maior risco. O que aconteceu?

Aconteceu que o raciocínio acima é baseado no mundo de Markowitz, que identifica risco com desvio-padrão e as expectativas de retorno são sempre positivas. Quando entramos no campo das perdas, o mundo vira de cabeça para baixo, e os investidores racionais de Markowitz deixam de lado a sua racionalidade e procuram qualquer esperança, por mínima que seja, de evitar perdas. Aqueles 20% da alternativa 1, que livra o investidor de perdas, obnubila a sua racionalidade, que não vê que está optando por uma alternativa que tem chance de lhe gerar maiores perdas.

É este ponto cego, ignorado por Markowitz ao modelar o investidor racional, que será explorado, de várias maneiras, pela dupla Kahneman e Tversky, e todos os que os seguiram. Os achados das Finanças Comportamentais, de maneira alguma, anulam a estrutura construída pela Moderna Teoria dos Portfólios, que ainda serve como uma maneira de pensar o comportamento do mercado financeiro e dos investidores. O que as Finanças Comportamentais nos oferecem é uma explicação para o nosso comportamento como investidores, cheio de desvios de uma suposta racionalidade. Quando se trata do mercado como um todo, no entanto, as premissas de eficiência dos mercados e racionalidade dos investidores, usadas como premissa por Markowitz e Sharpe, continuam valendo. Se você tem dúvida, tente bater a rentabilidade do mercado de maneira consistente ao longo do tempo. Boa sorte!

                      PS.
: para conhecer um pouco mais sobre o trabalho e a vida de Daniel Kahneman e Amos Tversky, sugiro a leitura do excelente livro de Michael Lewis, "The Undoing Project"..

** Marcelo Guterman é engenheiro de produção pela Escola Politécnica da USP e Mestre em Economia e Finanças pelo Insper. Possui o certificado CFA – Chartered Financial Analyst. Ministrou vários cursos de finanças ao longo dos últimos 35 anos, incluindo Gestão de Investimentos no programa do MBA de Finanças do Insper. Atuou em várias multinacionais de administração de fundos de investimento nas últimas décadas, como gestor de recursos e especialista de investimentos. É autor dos livros “Finanças do Lar” e “Descomplicando o Economês".

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