O Fundo Monetário Internacional – FMI sempre foi o “símbolo da besta” para as economias em dificuldades. Criado no contexto de uma nova ordem monetária do pós-guerra dentro dos Acordos de Bretton Woods , o FMI tem a missão de estabilizar economias em dificuldades. A ideia é emprestar moeda forte, em contrapartida a medidas de saneamento. São essas medidas que normalmente são “demonizadas” nos países submetidos aos famigerados “programas do FMI”. O FMI seria uma espécie de cavaleiro do apocalipse, forçando os países a adotarem um receituário desumano.
O ponto, claro, é que nenhum país é obrigado a recorrer ao FMI. Se o faz, é porque precisa de moeda forte para as suas transações externas. O recurso ao FMI é a confissão implícita de que o país não consegue mais andar com as próprias pernas. A última vez que o Brasil pegou um empréstimo do FMI foi em 1999, na esteira da mudança de regime cambial, quando o nosso nível de reservas estava muito baixo. Pagamos este empréstimo em 2005, quando o Brasil estava embarcado no superciclo das commodities, o que nos permitiu ter, por um breve período, superávit em nossa conta corrente externa.
A Argentina também tinha um programa com o FMI, que liquidou um ano depois do Brasil, em 2006. Ao contrário do Brasil, no entanto, a Argentina voltou ao FMI em 2018, no governo de Maurício Macri. E não foi uma volta qualquer: o FMI patrocinou o maior programa de resgate de todos os tempos, com uma linha de US$ 50 bilhões. Em sua exposição de motivos, a então diretora da instituição, Christine Lagarde, disse o seguinte: “nos últimos dois anos e meio, a Argentina tem estado envolvida numa transformação sistêmica da sua economia, incluindo mudanças profundas nos mercados cambiais, subsídios e impostos, bem como melhorias nas suas estatísticas oficiais. No entanto, uma recente mudança no sentimento do mercado e uma confluência malfadada de fatores colocaram a Argentina sob pressões significativas na balança de pagamentos” . Ou seja, apesar de fazer tudo certo, o governo Macri teria sido vítima de uma “mudança de humor” do mercado. Claro que não foi só isso, o que fica claro nas metas impostas pelo FMI para liberar o empréstimo, entre outras:
• Déficit fiscal de 2,7% do PIB em 2018 e 1,3% do PIB em 2019. O déficit havia sido de 3,8% do PIB em 2017. Ou seja, o governo Macri não havia feito quase nenhum ajuste fiscal até aquele momento.
• Uma meta de inflação de 27% para 2018, decrescendo até 9% em 2021. Ou seja, a inflação já estava caminhando para 30% ao ano.
• Fim do financiamento do Tesouro por parte do BC. Ou seja, o BC do governo Macri continuava imprimindo dinheiro para financiar os gastos do governo.
Portanto, Macri fez uma parte da lição de casa, mas não tão rápido a ponto de evitar a deterioração das condições macroeconômicas de seu governo. O resto é história: Macri perdeu as eleições para Alberto Fernandez, que tampouco caminhou na direção da cartilha do FMI (que, por si só, era muito mais frouxa do que de costume) e, cinco anos depois, chegamos aonde estamos: a meta de déficit para este ano é de 1,9% do PIB (desafiadora, o mercado projeta déficit de 2,8% do PIB para 2023), a inflação caminha para 200% ao ano e o BC continua amamentando o Tesouro.
Por que é importante analisar esse acordo da Argentina com o FMI? Porque este é o roteiro que o presidente eleito, Javier Milei , precisará seguir. Não precisa inventar nada, tudo o que é preciso fazer está nos relatórios do FMI. O último, referente à quinta e sexta revisões do acordo, pode ser encontrado aqui . Esqueça, portanto, as pirotecnias prometidas durante a campanha. Milei, se quiser apresentar resultados melhores do que Macri (e, por suposto, Fernandes), precisará diminuir o déficit fiscal e reestabelecer (ou estabelecer) a credibilidade do Banco Central, interrompendo o duto que liga a autoridade monetária ao Tesouro Nacional.
A pergunta é: por que Milei teria mais sucesso nessa empreitada do que Macri, considerando, inclusive, que estará herdando uma situação macroeconômica pior? A resposta se dá na política , não na economia . É na política, na capacidade de conduzir processos dolorosos de mudanças, que Milei jogará a sua sorte e a sorte de seu país. O problema da Argentina não é econômico . O desarranjo econômico é apenas o sintoma. O problema é político: como a sociedade argentina decidiu se organizar.
No ano que vem, o Plano Real completará 30 anos. Muitos ainda atribuem o sucesso do plano à URV. Este truque monetário, que superindexou a economia, permitiu o realinhamento dos preços naturalmente durante alguns meses, freando a inércia inflacionária. A transformação da URV no Real fez parecer que a hiperinflação desaparecera como mágica. No entanto, de nada adiantaria este truque se o trabalho pesado não tivesse sido feito nos anos seguintes, com o saneamento e venda dos bancos estaduais (verdadeiros “bancos centrais regionais”), reequilíbrio fiscal via aumento de impostos (reconhecendo que o Estado brasileiro custava caro) e, finalmente, a Lei de Responsabilidade Fiscal, que disciplinou (até certo ponto) os entes subnacionais. Além disso, o Banco Central ganhou autonomia operacional e a flutuação do câmbio de acordo com as forças de mercado, sem artificialismos, garantiu flexibilidade para equilibrar as contas externas. Tudo isso só foi possível porque houve, ao longo dos anos, uma coordenação política que permitiu a aprovação de leis que mudaram profundamente a organização do Estado brasileiro. Muitos podem, com razão, olhar o copo meio vazio, e constatar o quanto falta para sermos um país sério. No entanto, quando verificamos o estado da economia de nossos vizinhos do sul, ou mesmo quando comparamos com a nossa própria condição há 30 anos, concluímos que avançamos muito no campo macroeconômico.
O fato é que as “soluções” para os problemas macroeconômicos são conhecidas e não são rocketscience . O que falta, normalmente, é a capacidade de articulação política para liderar mudanças profundas. É famosa a frase “it’stheeconomy, stupid” , cunhada por James Carville, estrategista da vitoriosa campanha presidencial de Bill Clinton em 1992. Se o estado da economia é fundamental para se eleger (e a eleição de Milei prova isso mais uma vez), é a capacidade de articulação política que define o sucesso de um governo. Javier Milei precisará demonstrar essa liderança, se quiser tirar a Argentina do buraco em que se encontra. Caso contrário, por melhor que sejam suas ideias, terminará como Maurício Macri, aquele que poderia ter sido, mas não foi.