Em agosto passado, a empresa de turismo 123milhas pediu recuperação judicial (RJ). Em português, quebrou, e pediu proteção contra os seus credores. O montante de suas dívidas até que não é dos maiores em casos de grande repercussão: R$ 2,8 bilhões. Se compararmos, por exemplo, com os R$ 42 bilhões da Americanas, o caso da 123milhas não parece tão grave. O problema, no entanto, não é o montante, mas o número de credores: enquanto no caso de Americanas o grosso da dívida é detida por bancos e debenturistas, os credores da 123milhas são, em grande parte, os indivíduos que adiantaram dinheiro em troca de um pacote de turismo a ser entregue no futuro. Até o momento em que escrevo este artigo, foram listados 700 mil credores. Mas, segundo matéria do Valor Econômico, esse número poderá ultrapassar um milhão. Para termos uma ideia, até o momento, o maior processo de RJ em número de credores havia sido o da Oi, com 159 mil.
As empresas normalmente se financiam nos mercados financeiro (bancos) e/ou de capitais (debêntures ou outros valores mobiliários). Uma parte menor do capital de giro pode ser financiado pelos próprios clientes, que adiantam o pagamento por produtos e serviços antes de efetivamente recebê-los. Isso acontece, por exemplo, quando adiantamos uma parte do pagamento ao marceneiro, para que ele compre o material que será utilizado na confecção dos móveis sob medida. Quando fazemos isso, confiamos que o marceneiro entregará o combinado. Este é o caso também das companhias aéreas: compramos uma passagem e vamos usufruir do voo alguns dias ou meses depois. A quebra da ITA transportes aéreos, por exemplo, deixou muitos passageiros na mão.
O que chama a atenção no caso da 123milhas não é necessariamente a venda de passagens para entrega posterior. Este é o modus operandi do setor. A questão é o preço, muitas vezes bem abaixo do mercado. O segredo? Flexibilidade.
A 123milhas prometia viagens por preços realmente baixos. Primeiro, porque utilizava preponderantemente milhas que comprava de outros passageiros. Depois, porque, em sua modalidade Promo123, o consumidor adiantava o dinheiro em troca de uma passagem sem uma data pré-definida, o que dava mais flexibilidade para a empresa procurar barganhas. No dia 18/08, a empresa anunciou que não mais emitiria passagens nesta última modalidade, provavelmente porque os preços das passagens aéreas haviam subido muito, e o dinheiro adiantado pelos clientes não seria suficiente para comprá-las. Detalhe: o dinheiro seria devolvido aos clientes em balinhas, ou melhor, vouchers para comprar outra passagem na própria plataforma da empresa. Claro, por um preço muito maior. Estava claro que a empresa não tinha como devolver o dinheiro, o que precipitou o pedido de RJ.
Até aqui, os fatos. A partir daqui, a análise do risco desse tipo de transação. Se pararmos para pensar, sempre que adiantamos o dinheiro para receber uma mercadoria ou serviço posteriormente, estamos correndo o que chamamos de “risco de crédito”. Isso vale desde a compra em um site, passando pela compra de um automóvel, até a emissão de passagens aéreas. Quando vamos a um restaurante ou cabeleireiro, o risco é o inverso: como primeiro comemos ou cortamos o cabelo e só depois pagamos, o risco de crédito é do dono do estabelecimento. São raras as transações em que a troca de dinheiro pela mercadoria ou serviço se dá de maneira simultânea. Um exemplo é o supermercado ou uma loja de roupas, em que só saímos com a mercadoria depois de pagar.
No caso da emissão de passagens aéreas, o consumidor está assumindo que receberá o voo pelo qual pagou. Poderia ser diferente: o pagamento poderia ser feito depois do voo. Neste caso, o risco de crédito seria da companhia aérea. E mais: a companhia aérea precisaria se financiar no mercado financeiro ou de capitais para adiantar o serviço, tornando a operação ainda mais cara. No caso, a empresa “toma um empréstimo” barato, que é o pagamento adiantado da passagem aérea.
A 123milhas, como qualquer agência de viagens, é um intermediário entre o consumidor e a companhia aérea. A agência de viagens pega o dinheiro do consumidor e paga a companhia aérea. Assim, quando o consumidor adianta o dinheiro para uma agência, corre o risco de crédito de duas empresas: a própria agência de viagens e a companhia aérea.
A questão que muitos leitores devem estar se perguntando neste momento é: seria possível evitar esse tipo de risco? Sim, basta não comprar passagens aéreas. Claro, esta é uma não solução. Seria o mesmo que dizer que, para não correr o risco de ser atropelado, bastaria evitar atravessar a rua. Obviamente, uma impossibilidade. Portanto, o que nos cabe é procurar mitigar o risco. E, para isso, não há segredo: assim como, para não ser atropelado, é preciso o esforço de caminhar até a passarela, para mitigar o risco de crédito é preciso o esforço de pagar mais caro para empresas confiáveis.
Sabemos que o retorno esperado de um investimento é proporcional ao seu risco. O problema é que esta não é uma verdade matemática, é uma verdade probabilística. Isso significa que, em grande parte do tempo, o risco não se materializará em perdas. Milhares de consumidores saíram felizes com sua experiência com a 123milhas. Não fosse assim, a empresa não teria atraído tantos consumidores. Isso significa que esses consumidores felizes não correram risco? De maneira alguma. O risco sempre esteve lá. Era só uma questão de tempo para que o risco se materializasse. A música parou, e centenas de milhares de consumidores ficaram sem cadeiras para sentar-se.
Há garantia de que, pagando mais caro, não correremos riscos? Não, o risco sempre vai existir. Mas, estatisticamente, a probabilidade de ter problemas é menor. Tudo dá certo até o momento em que dá errado. Pagar mais caro é apenas uma forma de mitigar o risco. Se não queremos correr risco algum, o melhor é sequer se levantar da cama. E torcer para que o teto não caia em nossas cabeças.
** Marcelo Guterman é engenheiro de produção pela Escola Politécnica da USP e Mestre em Economia e Finanças pelo Insper. Possui o certificado CFA – Chartered Financial Analyst. Ministrou vários cursos de finanças ao longo dos últimos 35 anos, incluindo Gestão de Investimentos no programa do MBA de Finanças do Insper. Atuou em várias multinacionais de administração de fundos de investimento nas últimas décadas, como gestor de recursos e especialista de investimentos. É autor dos livros “Finanças do Lar” e “Descomplicando o Economês".