Os dentes novos de Feliciano Por Coluna Dinheiro do Povo, por Ricardo Galuppo | 06/08/2019 12:44:20 - Atualizada às 06/08/2019 12:44:20 Home iG › Economia › Colunas › O Dinheiro do Povo O sorriso novo do deputado não é um caso isolado. No Brasil, as autoridades acham justo e honesto pagar suas despesas privadas com dinheiro público Foto: Divulgação Deputado Marco Feliciano (Podemos-RJ) usou R$ 157 mil em dinheiro público para tratamento dentário O valor pode até parecer modesto quando posto ao lado dos números bilionários que costumam ser mencionados nas reportagens sobre o mau uso do dinheiro do povo. Mas, nesse caso, o que interessa não é o valor, mas o princípio. Quem reparar se dará conta de que os R$ 157.000 que a Câmara pagou pelo tratamento de dentes do deputado e pastor Marco Feliciano (do impoluto Podemos/RJ) nada mais são do que uma manifestação de um hábito que se tornou corriqueiro. Trata-se da mania de achar que o cidadão brasileiro é obrigado a arcar com as despesas médicas, a educação dos filhos e mais um monte de balangandãs que tiram dinheiro dos cofres públicos e o destinam a pagamentos que os demais brasileiros fazem com o próprio salário. No ano passado, a Câmara gastou mais de R$ 8 milhões com o ressarcimento de despesas com a saúde dos senhores parlamentares e de seus parentes mais próximos. Para ter de volta os R$ 157.000 que ele afirmou ter gasto para tornar seu sorriso bonito como os de um comercial de creme dental, Feliciano precisou recorrer à Mesa Diretora. A repartição responsável por receber os laudos, os recibos e depois devolver o valor do tal tratamento entendeu que a papelada não cumpria os requisitos. Mas os dirigentes da casa não viram nada errado e mandaram colocar o dinheiro na conta do colega. “A boca é minha ferramenta de trabalho”, disse ele para justificar o gasto — e avisar que não há nada de ilegal com essa prática. Leia também: Câmara dos Deputados paga R$ 157 mil por tratamento odontológico de Feliciano Prática indecente E não há mesmo: despesas como essa são vistas como naturais e é justamente aí que está o problema. Por pertencer a uma das corporações brasileiras que têm o poder de escrever as normas que as beneficiam, os senhores parlamentares de fato se dão ao “direito” de ter suas despesas de saúde integralmente pagas pelo contribuinte. Não se trata de plano de saúde. Trata-se, isso sim, de ressarcir os gastos, tostão por tostão. O povo rejeita essa prática, por considera-la indecente. Seus representantes, no entanto, a consideram a coisa mais natural do mundo. Ora, ora. Assim como a de Feliciano, a boca é também o instrumento de trabalho dos locutores de rádio, dos cantores de forró e dos camelôs da Rua 25 de Março. Mas não consta que ninguém que exerça essas atividades tenha seus cuidados com a saúde oral pagos pelo contribuinte só porque necessitam da boca para trabalhar. Mas os deputados acham que têm direito a tal regalia e não há nada que os convença do contrário. Nem sempre foi assim. Houve uma época neste país em que os homens públicos tinham a noção exata de onde começava sua responsabilidade e onde termina a do Estado no que se refere ao dinheiro do povo. Diz a história que em 1924, durante seu primeiro período como presidente de Minas Gerais (como eram chamados os governadores na época da República Velha), Olegário Maciel caiu de cama, com uma doença que parecia ter força para matá-lo. Como os médicos da então jovem capital mineira não conseguiram curá-lo, os correligionários de Maciel mandaram buscar no Rio de Janeiro o doutor Miguel Couto. Médico renomado, Couto viajou a Belo Horizonte, deu a consulta, prescreveu os medicamentos e, antes de embarcar de volta para o Rio de Janeiro, apresentou uma conta proporcional a seu prestígio. O secretário da Fazenda Fernando Melo Viana — que viria suceder a Maciel no Palácio da Liberdade — não teve dúvidas: pegou o dinheiro no caixa do Estado e o entregou ao médico. Dias depois, quando se recuperou, o presidente soube do gesto. Como não dispunha de recursos suficientes para cobrir a conta, pediu o valor emprestado a um irmão e ressarciu o cofre público. No bilhete que acompanhou o dinheiro, Maciel agradecia o gesto de Melo Viana mas lembrava que aquele dinheiro era público. E sua doença, privada. Creche paga pelo contribuinte Histórias como essa, naturalmente, ficaram no passado e os políticos de hoje estão mais para Feliciano do que para Maciel. Atenção: nem o que o deputado fez é um gesto isolado nem os parlamentares são as únicas autoridades que pagam suas despesas privadas com o dinheiro do povo. Assim como os senhores deputados e senadores acham correto se livrar das cáries às custas do contribuinte, os integrantes do Ministério Público Federal se dão o direito de não precisar mexer no próprio salário (que, convenhamos, não pode ser considerado baixo) para pagar as despesas com a creche e o jardim de infância de seus rebentos. Sim. Nos holerites dos senhores procuradores que têm filhos pequenos existe um item chamado Auxílio Pré-Escolar que é pago a título de “verba indenizatória”. Isso significa que o dinheiro entra na conta sem que sobre ele incida qualquer tipo de imposto, taxa ou contribuição. Não existe qualquer lei ou qualquer norma que não tenha sido escrita pelo próprio Ministério Público que autorize as autoridades a embolsar esse dinheiro. Mas como a corporação tem poder para estabelecer seus próprios benefícios, o dinheiro cai religiosamente nas contas e Suas Excelências acham essa a prática mais natural do mundo. Verbas indenizatórias Foto: Agência Brasil Sede da Procuradoria Geral da República (PGR), em Brasília Ninguém vê nada de errado em distorções desse tipo e toda vez que alguém critica esse tipo de regalia uma voz estridente se ergue do outro lado para dizer que tudo não passa de uma campanha destinada a prejudicar a instituição que assumiu a liderança do combate à corrupção no Brasil. Argumentam que os valores desses auxílios são modestos e, por isso, não pesam no bolso do contribuinte. O problema é que, de verba indenizatória em verba indenizatória, o bolo vai crescendo e, no final, o peso da conta aumenta. Em junho, por exemplo, ela custou R$ 484 mil reais — o que, de fato, parece pouco num mês em que a instituição gastou cerca de R$ 40 milhões com o pagamento dos salários dos 1147 procuradores da República da ativa. A questão é que, no final do ano, a conta não sai tão pequena assim. Custe o que custar, o problema, mais uma vez, não é o valor. Ainda que a ajuda fosse de um centavo apenas, a prática de gastar dinheiro público para cobrir despesas que os senhores procuradores deveriam pagar com o próprio salário já merecia a condenação geral. Mas não. Eles acham que isso é natural e que, desde que os beneficiados sejam eles próprios, não há mal algum em ver dinheiro público ser usado em benefício próprio. Dinheiro que poderia ser investido, por exemplo, na saúde pública e na educação que sofre com a escassez crônica de recursos. Tirar com uma mão e devolver com a outra Foto: Nelson Jr./SCO/STF - 12.6.19 Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF): aumento para cobrir o fim do Auxílio Moradia Por qualquer lado que se olhe, a prática se repete. Em novembro do ano passado, para recordar um caso que chamou atenção do país inteiro, o Supremo Tribunal Federal decidiu aumentar e R$ 33,7 mil para R$ 39,3 mil o salário dos ministros da corte. A justificativa que apresentaram para a medida foi a mais singela possível: era preciso por o fim a uma regalia. Até aquele momento, todos os juízes e procuradores da República do Brasil ganhavam pouco menos de R$ 4.500 a título de auxílio moradia. Mesmo os que já tinham casa própria embolsavam o benefício como se fosse o gesto mais natural do mundo. Ficou famoso no auge da reação àquela farra o caso de Marcelo Bretas , o juiz responsável pelos processos da Lava-Jato no Rio de Janeiro. Ele é casado com a também juíza Simone Bretas e o casal entrou na Justiça para que ambos recebessem o auxílio. É lógico que o pedido foi aceito por seus pares, que não viram nada irregular no fato de o casal ser auxiliado duas vezes para morar numa casa só — casa que, por sinal, já lhes pertencia. A regalia, claro, se estendia também aos integrantes do Ministério Público com o argumento de que, se os juízes podem, eles também tinham direito. Quando a sociedade passou a criticar esse tipo de generosidade e passou a condenar a prática indecorosa, os ministros do STF resolveram por ordem na casa. Mas, ao invés de acabar com a prática, resolveram varrê-la para debaixo do tapete. Para fazer a regalia desaparecer dos holerites, decidiram dar um aumento generoso aos magistrados. Um aumento polpudo o suficiente para cobrir o valor do auxílio que seria tirado. Deram com uma mão o que estavam tomando com a outra e ainda disseram que, por causa disso, a medida não teria impacto sobre as contas públicas. Claro que teria. Corrupção e privilégios Bastou os magistrados fazerem jus ao aumento para que os Procuradores da República, os parlamentares federais, os ministros de Estado e outras autoridades bem-postas na República reivindicassem a mesma regalia. Esse aumento em cascata não é previsto em lei! Tudo o que a Constituição estabelece é que nenhum funcionário público pode ganhar mais do que o Ministro do Supremo. Não está escrito em lugar nenhum que o aumento dos ministros deva ser automaticamente estendido às corporações mais barulhentas. A prática, no entanto, tornou-se tão habitual que basta os ministros elevarem os próprios salários para que uma epidemia de aumentos logo se espalhe pelo legislativo e o pelo judiciário. Calma! Ninguém está dizendo aqui que os procuradores e os juízes devam ganhar mal. Não se trata disso. O que está sendo dito é que, num país que vê a arrecadação ser puxada para baixo pelos efeitos da recessão mais prolongada de sua história, já passou da hora de se pensar se é justo que o dinheiro público seja preferencialmente utilizado para bancar esse tipo de regalia e não para financiar os serviços públicos que estão em petição de miséria. Leia também: O campo sob ataque Todo desvio de dinheiro público , seja pela corrupção , seja pelos privilégios corporativos, é imoral, deve ser coibido e, se acontecer, punido com rigor. Mas a ainda vai demorar muito para que a população entenda que não importa se o dinheiro sai do cofre pela porta dos fundos, como nos casos de corrupção, ou pela porta da frente, como no caso da cobertura das despesas dos dentes novos do deputado Feliciano. O que interessa, de fato, é o dinheiro deixar de ir para a saúde e a educação. Não a saúde das autoridades e a educação de seus filhos. Mas a do povo que paga os impostos que sustentam esse tipo de coisas. Link deste artigo: https://economia.ig.com.br/colunas/dinheiro-do-povo/2019-08-06/os-dentes-novos-de-feliciano.html