O valor pode até parecer modesto quando posto ao lado dos números bilionários que
costumam ser mencionados nas reportagens sobre o mau uso do dinheiro do povo. Mas,
nesse caso, o que interessa não é o valor, mas o princípio. Quem reparar se dará conta
de que os R$ 157.000 que a Câmara pagou pelo tratamento de dentes do deputado e
pastor Marco Feliciano
(do impoluto Podemos/RJ) nada mais são do que uma
manifestação de um hábito que se tornou corriqueiro. Trata-se da mania de achar que o
cidadão brasileiro é obrigado a arcar com as despesas médicas, a educação dos filhos e
mais um monte de balangandãs que tiram dinheiro dos cofres públicos e o destinam a
pagamentos que os demais brasileiros fazem com o próprio salário.
No ano passado, a Câmara gastou mais de R$ 8 milhões com o ressarcimento de
despesas com a saúde dos senhores parlamentares e de seus parentes mais próximos.
Para ter de volta os R$ 157.000 que ele afirmou ter gasto para tornar seu sorriso bonito
como os de um comercial de creme dental, Feliciano precisou recorrer à Mesa Diretora.
A repartição responsável por receber os laudos, os recibos e depois devolver o valor do
tal tratamento entendeu que a papelada não cumpria os requisitos. Mas os dirigentes da
casa não viram nada errado e mandaram colocar o dinheiro na conta do colega. “A boca
é minha ferramenta de trabalho”, disse ele para justificar o gasto — e avisar que não há
nada de ilegal com essa prática.
Leia também: Câmara dos Deputados paga R$ 157 mil por tratamento odontológico de Feliciano
Prática indecente
E não há mesmo: despesas como essa são vistas como naturais e é justamente aí que
está o problema. Por pertencer a uma das corporações brasileiras que têm o poder de
escrever as normas que as beneficiam, os senhores parlamentares de fato se dão ao
“direito” de ter suas despesas de saúde integralmente pagas pelo contribuinte. Não se
trata de plano de saúde. Trata-se, isso sim, de ressarcir os gastos, tostão por tostão. O
povo rejeita essa prática, por considera-la indecente. Seus representantes, no entanto, a
consideram a coisa mais natural do mundo.
Ora, ora. Assim como a de Feliciano, a boca é também o instrumento de trabalho dos
locutores de rádio, dos cantores de forró e dos camelôs da Rua 25 de Março. Mas não
consta que ninguém que exerça essas atividades tenha seus cuidados com a saúde oral pagos pelo contribuinte só porque necessitam da boca para trabalhar. Mas os deputados acham que têm direito a tal regalia e não há nada que os convença do contrário.
Nem sempre foi assim. Houve uma época neste país em que os homens públicos tinham a noção exata de onde começava sua responsabilidade e onde termina a do Estado no que se refere ao dinheiro do povo. Diz a história que em 1924, durante seu primeiro período como presidente de Minas Gerais (como eram chamados os governadores na época da República Velha), Olegário Maciel caiu de cama, com uma doença que parecia ter força para matá-lo.
Como os médicos da então jovem capital mineira não conseguiram curá-lo, os
correligionários de Maciel mandaram buscar no Rio de Janeiro o doutor Miguel Couto.
Médico renomado, Couto viajou a Belo Horizonte, deu a consulta, prescreveu os
medicamentos e, antes de embarcar de volta para o Rio de Janeiro, apresentou uma
conta proporcional a seu prestígio.
O secretário da Fazenda Fernando Melo Viana — que viria suceder a Maciel no Palácio
da Liberdade — não teve dúvidas: pegou o dinheiro no caixa do Estado e o entregou ao
médico. Dias depois, quando se recuperou, o presidente soube do gesto. Como não
dispunha de recursos suficientes para cobrir a conta, pediu o valor emprestado a um
irmão e ressarciu o cofre público. No bilhete que acompanhou o dinheiro, Maciel
agradecia o gesto de Melo Viana mas lembrava que aquele dinheiro era público. E sua
doença, privada.
Creche paga pelo contribuinte
Histórias como essa, naturalmente, ficaram no passado e os políticos de hoje estão mais
para Feliciano do que para Maciel. Atenção: nem o que o deputado
fez é um gesto
isolado nem os parlamentares são as únicas autoridades que pagam suas despesas
privadas com o dinheiro do povo. Assim como os senhores deputados e senadores
acham correto se livrar das cáries às custas do contribuinte, os integrantes do Ministério
Público Federal se dão o direito de não precisar mexer no próprio salário (que,
convenhamos, não pode ser considerado baixo) para pagar as despesas com a creche e o
jardim de infância de seus rebentos.
Sim. Nos holerites dos senhores procuradores que têm filhos pequenos existe um item
chamado Auxílio Pré-Escolar que é pago a título de “verba indenizatória”. Isso significa
que o dinheiro entra na conta sem que sobre ele incida qualquer tipo de imposto, taxa ou
contribuição. Não existe qualquer lei ou qualquer norma que não tenha sido escrita pelo próprio Ministério Público que autorize as autoridades a embolsar esse dinheiro. Mas como a corporação tem poder para estabelecer seus próprios benefícios, o dinheiro cai religiosamente nas contas e Suas Excelências acham essa a prática mais natural do mundo.
Verbas indenizatórias
Ninguém vê nada de errado em distorções desse tipo e toda vez que alguém critica esse
tipo de regalia uma voz estridente se ergue do outro lado para dizer que tudo não passa
de uma campanha destinada a prejudicar a instituição que assumiu a liderança do
combate à corrupção no Brasil. Argumentam que os valores desses auxílios são
modestos e, por isso, não pesam no bolso do contribuinte. O problema é que, de verba
indenizatória em verba indenizatória, o bolo vai crescendo e, no final, o peso da conta
aumenta. Em junho, por exemplo, ela custou R$ 484 mil reais — o que, de fato, parece
pouco num mês em que a instituição gastou cerca de R$ 40 milhões com o pagamento
dos salários dos 1147 procuradores da República da ativa. A questão é que, no final do
ano, a conta não sai tão pequena assim.
Custe o que custar, o problema, mais uma vez, não é o valor. Ainda que a ajuda fosse de
um centavo apenas, a prática de gastar dinheiro público para cobrir despesas que os
senhores procuradores deveriam pagar com o próprio salário já merecia a condenação
geral. Mas não. Eles acham que isso é natural e que, desde que os beneficiados sejam
eles próprios, não há mal algum em ver dinheiro público ser usado em benefício
próprio. Dinheiro que poderia ser investido, por exemplo, na saúde pública e na
educação que sofre com a escassez crônica de recursos.
Tirar com uma mão e devolver com a outra
Por qualquer lado que se olhe, a prática se repete. Em novembro do ano passado, para
recordar um caso que chamou atenção do país inteiro, o Supremo Tribunal Federal
decidiu aumentar e R$ 33,7 mil para R$ 39,3 mil o salário dos ministros da corte. A
justificativa que apresentaram para a medida foi a mais singela possível: era preciso por
o fim a uma regalia. Até aquele momento, todos os juízes e procuradores da República
do Brasil ganhavam pouco menos de R$ 4.500 a título de auxílio moradia. Mesmo os
que já tinham casa própria embolsavam o benefício como se fosse o gesto mais natural
do mundo.
Ficou famoso no auge da reação àquela farra o caso de Marcelo Bretas , o juiz responsável pelos processos da Lava-Jato no Rio de Janeiro. Ele é casado com a também juíza Simone Bretas e o casal entrou na Justiça para que ambos recebessem o auxílio. É lógico que o pedido foi aceito por seus pares, que não viram nada irregular no fato de o casal ser auxiliado duas vezes para morar numa casa só — casa que, por sinal, já lhes pertencia. A regalia, claro, se estendia também aos integrantes do Ministério Público com o argumento de que, se os juízes podem, eles também tinham direito.
Quando a sociedade passou a criticar esse tipo de generosidade e passou a condenar a
prática indecorosa, os ministros do STF resolveram por ordem na casa. Mas, ao invés de
acabar com a prática, resolveram varrê-la para debaixo do tapete. Para fazer a regalia
desaparecer dos holerites, decidiram dar um aumento generoso aos magistrados. Um
aumento polpudo o suficiente para cobrir o valor do auxílio que seria tirado. Deram com
uma mão o que estavam tomando com a outra e ainda disseram que, por causa disso, a
medida não teria impacto sobre as contas públicas. Claro que teria.
Corrupção e privilégios
Bastou os magistrados fazerem jus ao aumento para que os Procuradores da República,
os parlamentares federais, os ministros de Estado e outras autoridades bem-postas na
República reivindicassem a mesma regalia. Esse aumento em cascata não é previsto em
lei! Tudo o que a Constituição estabelece é que nenhum funcionário público pode
ganhar mais do que o Ministro do Supremo.
Não está escrito em lugar nenhum que o aumento dos ministros deva ser
automaticamente estendido às corporações mais barulhentas. A prática, no entanto,
tornou-se tão habitual que basta os ministros elevarem os próprios salários para que uma
epidemia de aumentos logo se espalhe pelo legislativo e o pelo judiciário.
Calma! Ninguém está dizendo aqui que os procuradores e os juízes devam ganhar mal.
Não se trata disso. O que está sendo dito é que, num país que vê a arrecadação ser
puxada para baixo pelos efeitos da recessão mais prolongada de sua história, já passou
da hora de se pensar se é justo que o dinheiro público seja preferencialmente utilizado
para bancar esse tipo de regalia e não para financiar os serviços públicos que estão em
petição de miséria.
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Todo desvio de dinheiro público
, seja pela corrupção
, seja pelos privilégios
corporativos, é imoral, deve ser coibido e, se acontecer, punido com rigor. Mas a ainda
vai demorar muito para que a população entenda que não importa se o dinheiro sai do cofre pela porta dos fundos, como nos casos de corrupção, ou pela porta da frente, como no caso da cobertura das despesas dos dentes novos do deputado Feliciano. O que interessa, de fato, é o dinheiro deixar de ir para a saúde e a educação. Não a saúde das autoridades e a educação de seus filhos. Mas a do povo que paga os impostos que sustentam esse tipo de coisas.