O presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, estuda acabar com rotativo
Lula Marques/ Agência Brasil
O presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, estuda acabar com rotativo

Está em discussão no Congresso o Projeto de Lei 2685/22 , que institui o ReFamília (Programa Nacional de Renegociação das Dívidas das Famílias) e, dentre outras coisas, prevê limites para a cobrança de juros pelos cartões de crédito quando o cliente entrar no crédito rotativo

Esta, por si só, já não é uma discussão trivial e mereceria um debate mais amplo sobre as reais causas dos juros tão elevados no país. O problema é que, com o ambiente bélico que se formou em Brasília, o atual presidente da Federação Brasileira dos Bancos (Frebraban), Isaac Sidney, preferiu aproveitar o momento para trazer à baila algo que tem incomodado as grandes instituições financeiras , mas que nada tem a ver com o que está em discussão no Congresso. 

Segundo ele, a causa dos juros elevados no “crédito rotativo” estaria relacionada ao que se conhece na linguagem do mercado como “parcelado sem juros”. Para compreender melhor a questão, precisamos entender inicialmente a diferença entre essas duas modalidades.

O “crédito rotativo” é uma modalidade de crédito oferecida aos portadores de cartão de crédito quando eles não fazem o pagamento total da fatura do cartão na data do seu vencimento. A diferença entre o valor total e o que foi efetivamente pago até o vencimento se transforma automaticamente em um empréstimo, sobre o qual são aplicados juros.

Hoje, o crédito rotativo pode ser usado apenas por 30 dias. Depois disso, o valor deve ser pago integralmente ou o devedor deve buscar outro tipo de empréstimo para quitar a fatura. Dados recentes do Banco Central (BACEN) mostram que a taxa de juros associada ao crédito rotativo estava na casa dos 15,05% ao mês em junho. E é aqui que está a preocupação do Congresso.

Já o “parcelado sem juros” nada mais é do que uma opção que os lojistas dão aos seus consumidores de efetuar as compras de maneira parcelada no cartão de crédito. Neste caso, o lojista difere, ao longo do tempo, o valor que teria a receber por determinado produto e, para não ficar sem liquidez (dinheiro em caixa), acaba por antecipar esse recebimento, por exemplo, junto às empresas adquirentes (as conhecidas maquininhas).

De maneira simplificada, é como se o lojista antecipasse seu recebimento mediante a transferência do direito de receber dos bancos emissores do cartão de crédito os valores futuros, fruto de suas vendas, para as empresas adquirentes (de maquininha), pagando uma “taxa de desconto sobre esses valores”. E essa taxa, em junho, estava em 1,45% ao mês, também segundo dados do BACEN.

Note-se que, neste processo, é como se o comerciante negociasse os juros em nome do consumidor, obtendo uma taxa menor do que o consumidor conseguiria junto aos bancos emissores dos cartões de crédito no crédito rotativo, por exemplo. Mais do que isso, essa linha de crédito denominada de antecipação é a mais barata e democrática para os lojistas, quando comparada com outras linhas, como a de capital de giro, cheque especial e o próprio uso do cartão de crédito. E talvez seja isto que esteja incomodando tanto os grandes bancos: a concorrência.

Mas vamos aos pontos levantados pelo presidente da Febraban. Segundo ele, o parcelado sem juros tem elevado o risco e a inadimplência no setor e cita um suposto estudo da Febraban (aparentemente não disponível), que sugere: (i) que a inadimplência de compras a prazo é maior do que à vista; e (ii) que o público de baixa renda é quem mais tem dificuldade para manter as contas em dia.

Com relação ao argumento da elevação do risco, a modalidade “parcelado sem juros” apenas se limita a usar o crédito já concedido pelas instituições financeiras aos portadores de cartões. E esse limite é previamente avaliado e precificado por essas instituições, considerando o risco de inadimplemento de cada cliente.

Já a forma como esse cliente utilizará o limite disponibilizado (seja com qual produto ou a qual prazo) não sofre nenhuma imposição por parte dos bancos, mesmo porque, parcelando ou não, o limite total já está previamente definido. Nesse sentido, a modalidade “parcelado sem juros” não amplia o crédito e não altera as regras definidas pelos bancos para o uso do cartão e, portanto, não agrega nada em termos de risco de inadimplemento.

Seria interessante que o suposto estudo da Febraban fosse colocado a público para debate de maneira aberta e transparente, para que toda a sociedade tivesse mais informações do quanto sugerido, inclusive para que fosse escrutinado por um corpo técnico capaz de avaliar se existe, de fato, alguma causalidade nas relações sugeridas pelo presidente daquela instituição.

Note-se que não estou desconsiderando, a priori, que o prazo de financiamento das vendas impacta diretamente o custo de capital e o risco de crédito. Mas, como já destaquei, isso faz parte da avaliação do risco realizada pelos bancos e previamente precificada por cliente. Aliás, vale lembrar, por exemplo, que a tarifa de intercâmbio recebida pelos bancos dos comerciantes é mais elevada quando a compra é realizada a prazo, já indicando a preocupação com o diferimento do pagamento.

Também não ignoro que a inadimplência é um dos fatores que contribui para a elevação das taxas de juros no país. Entretanto, já vi estudo indicando que o inverso também é verdadeiro, ou seja, o inadimplemento cresce com a elevação da taxa de juros. De toda forma, não há nada que autorize atribuir esse aumento do inadimplemento à existência da modalidade “parcelado sem juros”.

Ao contrário, os dados a que tive acesso até hoje não indicaram que compras parceladas geram mais inadimplemento do que à vista. Mais do que isso, o que temos de novidades é uma crise econômica persistente, que reduziu a renda real de parte da população, e um crescimento substancial da quantidade de cartões de crédito ativos nos últimos anos.

Segundo dados do Bacen, a quantidade de cartões ativos aumentou de 99 milhões em dezembro de 2018 para 209 milhões em dezembro de 2022 (coincidência ou não, a inadimplência neste mesmo período subiu de 37,95% para 45,08%, chegando a 53,42% em maio de 2023). 

Olhando essas variáveis, talvez seja o caso de perguntarmos se não foi a combinação da crise econômica com uma base de cartões de crédito bem mais alta que gerou o nível de inadimplemento nessa modalidade e, por consequência, o patamar da taxa de juros no rotativo hoje vigente.

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