Lula e com o presidente da Argentina, Alberto Fernández
Ricardo Stuckert - 23.01.2023
Lula e com o presidente da Argentina, Alberto Fernández

Os presidentes do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), e da Argentina, Alberto Fernandéz, anunciaram que estão empenhados em avançar nas "discussões sobre uma moeda comum sul-americana" , o "sur" (sul em espanhol). Enquanto o Brasil nega que o projeto irá substituir o real, o governo argentino não descarta a possibilidade. 

Se a medida se concretizar, tem potencial para criar o segundo maior bloco de moeda única do mundo, atrás da União Europeia, que adotou a zona do euro em 1999. Desde então, mais países aderiram ao bloco, fortalecendo a moeda e a economia do continente. Mas a América Latina está pronta para replicar o modelo?

Igor Lucena, doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Lisboa, afirma que devido à discrepância nas situações sociais, políticas e econômicas dos países latino-americanos, o processo deve ser demorado e desvantajoso para o Brasil.

"A Europa levou 30 anos nesse processo, quando os países já eram parecidos economicamente. O sonho de uma moeda integrada na América Latina é muito distante, nesse projeto o Brasil seria um pagador de contas dos outros países, na prática, seriam só vantagens para a Argentina. O governo deve explicar com calma quais são suas pretensões", diz.

Segundo Leonardo Trevisan, professor de economia e relações internacionais da ESPM, o desejo de uma moeda única é antigo, mas a realidade do continente se sobrepõe. Entretanto, é necessário ampliar as relações comerciais entre os países da América do Sul, principalmente com os "hermanos". 

"Se você conversar com 10 exportadores, todos vão comentar da dificuldade da Argentina conseguir dólares. Se, de alguma forma, a gente criar uma moeda com funções puramente de transação, comerciais, financeiras, ajudaria bastante os negócios. Nesse aspecto, o "sonho" da moeda única é realizável", afirma. 

O professor exemplifica citando que a Argentina possui US$ 7 bilhões em reservas cambiais, enquanto o Brasil tem US$ 350 bilhões. "Isso já mostra que há uma distância muito significativa entre a realidade cambial argentina e a brasileiro. E isso atrasa esse processo".

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O projeto

Ainda em fase embrionária, a medida já gera confusão. Em entrevista ao "Financial Times", o ministro da Economia argentino, Sérgio Massa, disse que o estudo engloba um modelo parecido com o da União Europeia, "de questões fiscais ao tamanho da economia e ao papel dos bancos centrais". 

Na Europa, os países contam com o Banco Central Europeu, que rege as políticas monetárias para o euro, e outros bancos nacionais, que passaram a ter função primordial de fiscalização do sistema financeiro local. 

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, chegou a Buenos Aires neste domingo, e afastou a possibilidade de substituição do real. O "sur", nome escolhido pelo governo brasileiro, seria usado apenas para transações comerciais e financeiras entre os dois países, inicialmente, sem circulação física.

Nesse ponto os dois governos concordam. "Seria um mecanismo de integração comercial", disse Massa ao FT, completando: "Eu não desejo criar falsas expectativas. É apenas o primeiro passo em uma longa jornada que a América Latina precisa trilhar". 

Em artigo escrito em 2022 para a Folha de São Paulo, Haddad e Gabriel Galípolo, secretário-executivo do Ministério, defendem que "as taxas de câmbio entre as moedas nacionais e a SUR seriam flutuantes. Direitos financeiros, como reservas internacionais, também forneceriam contrapartida para emissão equivalente de SUR".

No mesmo texto, os dois sugerem a criação de um fundo que auxilie na redução das desigualdades entre os países. "A criação de uma moeda sul-americana é a estratégia para acelerar o processo de integração regional, constituindo um poderoso instrumento de coordenação política e econômica para os povos sul-americanos. É um passo fundamental rumo ao fortalecimento da soberania e da governança regional, que certamente se mostrará decisivo em um novo mundo", escreveu.

A ideia central seria fortalecer o bloco e diminuir a dependência do dólar americano nas transações entre países do continente. 

Argentina e Brasil são as duas maiores economias do Mercosul, representando 50% e 15,3% do PIB (Produto Interno Bruto) da região (dados de 2021). 

Troca monetária seria vantajosa para os argentinos

Segundo o Instituto de Estatísticas Indec, a Argentina fechou 2022 com inflação de 94,8%, após o Índice de Preços ao Consumidor subir 5,1% em dezembro, contra 4,9% em novembro. A expectativa é que os preços no país continuem subindo ainda neste ano. 

Além disso, a Argentina tem sido afastada de diversos acordos comerciais por conta de um débito de US$ 40 bilhões com o Fundo Monetário Internacional (FMI), adquirido em 2018. 

Com isso, aderir a uma moeda mais estável, como o real, seria um "deleite" para os "hermanos", explica Trevisan, da ESPM.

"Isso arrefeceria a busca por dólares dos exportadores argentinos, é o calcanhar de Aquiles deles. Eles não tem como pagar viagens, medicamentos. Eles criaram até o "dólar Copa do Mundo", para pessoas que iriam ver os jogos no Catar. Essa situação revela uma carência absoluta de dólares", diz.

Por isso, o projeto de moeda única deve enfrentar resistência entre os brasileiros. A alternativa é substituir a proposta de moeda única por "moeda comum", ou seja, uma unidade virtual de valor, sem papel moeda, uma espécie de URV, para driblar a restrição de dólares da Argentina e facilitar o comércio entre os dois países. 

“O problema é exatamente a divisa. A gente está quebrando a cabeça para encontrar uma solução. Alguma coisa em comum, alguma coisa que permita a gente incrementar o comércio porque a Argentina é um dos países que compram manufaturados do Brasil e a nossa exportação para cá está caindo. Passa por driblar a dificuldade deles. Estamos pensando em várias possibilidades”, afirmou Haddad neste domingo (22).

Por enquanto, o foco deve ser outro

Devido às dificuldades financeiras da Argentina, o país corre risco de diminuir a importação de produtos brasileiros, o que seria ruim para ambos os países. Sendo assim, os dois governos buscam criar um fundo de financiamento para a exportação de produtos brasileiros.

A medida visa a implementação de um banco de crédito de contratos de commodities, como petróleo, gás, trigo e soja, produzidos em larga escala pelos argentinos, para substituir o dólar, já que o país vizinho tem dificuldade de encontrar a moeda americana no mercado. 

A ideia é garantir ao governo brasileiro um seguro em caso de calote ou desvalorização do peso argentino, sem interferir na balança comercial entre as duas economias. 

O governo brasileiro visa manter a relação com seu maior parceiro comercial no continente, que vem sendo atraído a comprar produtos chineses em detrimento dos brasileiros. A China superou o Brasil e é hoje o maior parceiro comercial da Argentina. 

Trevisan explica que as exportações brasileiras para o país vizinho têm alto valor agregado e geram empregos nacionalmente, sendo de profunda relevância para os dois. 

"Mesmo em 2022, as exportações aumentaram 21%. O Brasil exportou para a Argentina US$ 26 bilhões, isso não é pouca coisa. São exportações de produtos industrializados, ou seja, geraram emprego aqui no Brasil. Não é como exportar soja pra China", comenta.

Nesta terça-feira (24), Lula participação da 7ª Cúpula de Chefas e Chefes de Estado da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac). A comitiva do presidente irá apresentar os estudos aos países vizinhos. 

"Mais importante é como a diplomacia brasileira está chegando perto dos novos parceiros, é uma forma de construção de diálogo. Ouvir o que os argentinos querem, mas também os paraguaios, os chilenos, etc. Como um país de uma economia muito maior que a deles", ressalta Trevisan. 

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