Os pequenos sofrem mais com a fome no Brasil. Em 37,8% dos lares com crianças de até 10 anos, houve fome ou redução de quantidade e qualidade dos alimentos, de acordo com o Inquérito divulgado sobre insegurança alimentar no contexto da pandemia de Covid-19, da Rede Penssan, que reúne entidades como Ação da Cidadania, Oxfam, Vox Populi e Actionaid.
E a desigualdade regional se mostra nos números da pesquisa, que foi a 12.745 domicílios: no Maranhão, são 63,3% das casas com crianças nessa condição, enquanto no Espírito Santo, a parcela é de 13,9%.
"É preciso uma política de enfrentamento com foco na infância, conforme demonstrado nos dados. Elas estão sofrendo mais intensamente. A falta de alimentação adequada nessa fase da infância, com sacrifício de outros membros da família, provoca comprometimentos futuros, físicos e cognitivos", afirma Francisco Menezes, consultor de políticas públicas da Actionaid.
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É o futuro de Antônio Carlos, de 3 anos, e Tauane, de 1 ano, que está em jogo. Filhos de Luana Stefany da Silva, de 20 anos, e Maik do Nascimento, de 28, eles não têm tido a alimentação adequada. A família mora numa ocupação no Rio com pouca infraestrutura:
"Hoje nós comemos angu e feijão, era o que tinha. Sempre vamos atrás de carreatas (pessoas que doam alimentos pelo Centro do Rio), mas nem sempre tem", lamenta Luana, que cozinha em um “fogão” improvisado.
Para acender o fogo, usa álcool. Já Nascimento é pedreiro, mas tem tido dificuldade para conseguir emprego e vive de trabalhos esporádicos.
"Nós moramos há dois meses na ocupação, não recebemos o Auxílio Brasil, e dependemos da ajuda de terceiros para ter o que comer", diz Luana, que se cadastrou no programa e tem esperança de conseguir.
Caso consiga, como o Auxílio Brasil não diferencia famílias mais numerosas das que têm apenas um morador, vai receber apenas R$ 150 por mês para cada membro da família. Esse desenho do programa acaba prejudicando os lares com crianças, "principalmente pelo expressivo número de mães solo com filhos", alerta Menezes.
Priscila Nunes de Araújo, 31 anos, mãe de 4 filhos, conta que o dinheiro do programa de transferência de renda dura apenas uma semana.
"Vou ao mercado e compro somente o básico do básico. Carne já não sei mais o que é há muito tempo, quando dá comemos ovo, salsicha, macarrão e feijão. As crianças bebem leite e tem vezes que o dinheiro não dá", lamenta Priscila, que trabalhava como faxineira na Vila Kennedy, na Zona Oeste do Rio, mas com a pandemia perdeu o trabalho.
O marido, Marcelo Lourenço, de 31, cata material para fazer reciclagem e faz bicos vendendo água nas ruas para complementar a baixa renda da família. Das crianças: Noemi, 7 anos; e Enzo, 4; estão matriculados em uma escola pública e têm refeições diárias. Já Ana Flávia, de 3, e Micaely, de 1 aninho, se alimentam com o que tem em casa.
"Se não fossem doações de cesta básica e quentinhas, a gente ficaria sem ter como comer", explica Priscila.
Menos merenda nas escolas
Outro ponto levantado por Menezes é a redução expressiva nos recursos para merenda escolar, que estão congelados desde 2017, com a inflação dos alimentos ultrapassando 43% desde o início da pandemia em 2020:
"Quando o Brasil saiu da Mapa da Fome, a alimentação escolar teve uma papel importante. A alimentação vai piorando, com a substituição de alimentos de melhor qualidade nutricional para ultraprocessados, mais baratos."
O presidente Jair Bolsonaro vetou o reajuste de 34% nos recursos repassados para merenda escolar, incluído pelo Congresso no Orçamento, em meados do mês passado.
Kiko Afonso, diretor-executivo da Ação da Cidadania, diz que o quadro mostrado na pesquisa é muito claramente percebido no trabalho de campo:
"Casas nas quais a mulher é responsável pela família com crianças é onde a fome é mais gritante. É um retrato que vejo todo dia."
Na média brasileira, a insegurança alimentar moderada e grave atinge 30,7% dos lares. A situação do mercado de trabalho dificulta vencer a fome. Pela pesquisa, nos domicílios onde o responsável é um trabalhador informal, a fome é ameaça em 44,7% das casas. Quando o trabalho é formal, chega a 16,7%.
"Essas famílias com crianças pequenas são onde estão os desempregados, os informais, com baixa escolaridade e baixa capacidade de empregabilidade. É difícil isolar um aspecto. Vencer isso vai exigir medidas interligadas, que abordem todos esses aspectos", alerta Ana Segall, médica sanitarista e pesquisadora da Rede Penssan.
Mas o temor de Afonso já está acontecendo: a naturalização da fome. As doações para a ONG criada por Betinho caíram drasticamente: de R$ 100 milhões no ano da pandemia para R$ 10 milhões este ano.
"Como sempre aconteceu, a fome é naturalizada."
Graus da insegurança alimentar
A pesquisa da Rede Penssan leva em conta a segurança alimentar, quando há certeza de que haverá alimentação de qualidade na mesa, algo que só ocorre em quatro estados do país. E também classifica os domicílios de acordo com graus de insegurança alimentar, quando não há garantia de que haverá alimentação suficiente e de qualidade para todos.
Segurança alimentar - A família tem acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer outras necessidades básicas, como moradia.
Insegurança alimentar leve - Há preocupação ou incerteza se será possível ter acesso a alimentos no futuro. A família acaba contando com uma qualidade inadequada de alimentação para ter quantidade suficiente de comida para todos. Ou seja, troca qualidade por quantidade.
Insegurança alimentar moderada - Em razão da falta de alimentos para suprir a todos, as famílias reduzem a quantidade de comida ou há uma ruptura no padrão de alimentação, ou seja, na quantidade de refeições por dia, na qualidade do que vai para a mesa.
Insegurança alimentar grave - A família passa fome (sente fome por falta de dinheiro para comprar alimentos, faz apenas uma refeição ao dia ou fica sem comer um dia inteiro).