Quando o assunto é inflação descontrolada, logo se lembra da vizinha Venezuela, já que o país sofre historicamente com hiperinflação, mas, em julho, a Argentina registrou alta no Índice de Preços ao Consumidor (IPC) de 7,4%, maior taxa desde abril de 2002, acima dos 5,3% registrados na Venezuela no mesmo período. Nos últimos 12 meses, o país governado por Alberto Fernández enfrenta inflação de 71% e já se fala em 100% ao final do ano.
"A Venezuela tem uma situação econômica menos dramática do que a da Argentina hoje, e a Venezuela não produz a quantidade de grãos que a Argentina produz. A Venezuela não tem a estrutura industrial, não tem o PIB da Argentina. É evidente que a situação na Argentina é dramática, mas ainda não se assemelha a da Venezuela", opina Leonardo Trevisan, professor de Economia e Relações Internacionais da ESPM.
O professor ressalta, no entanto, que no caso venezuelano existem fatores geopolíticos, além de econômicos.
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"A Venezuela fez uma opção numa aproximação muito forte com a China e com a Rússia e atrasou completamente a atualização dos seus centros produtores da única commodity que ela vende, que é petróleo. Não é o caso da Argentina, que possui produtos que são absolutamente cobiçados pelo mercado internacional, a começar pelo trigo, que está subindo de preço pela questão ucraniana, e principalmente soja".
O descontrole econômico argentino fez com que o país tivesse três ministros da Economia em 30 dias, são eles: Martín Guzmán , Silvina Batakis e o atual, Sergio Massa, escolhido para o comando de um "superministério", com a fusão das pastas da Economia, Desenvolvimento Produtivo, além de Agricultura, Pecuária e Pesca.
Massa tem agora como principais desafios a recuperação do peso argentino, que acumula queda de 24% ante o dólar americano, e a recuperação da credibilidade do país. O banco JPMorgan elevou o risco-país da Argentina para 2.654 pontos, o mais alto patamar desde a tensa negociação de dívida de títulos com credores em 2020.
"A Argentina não tem uma única crise. A Argentina tem uma crise permanente, porque as causas são as mesmas. Há um risco, sim, de uma hiperinflação na Argentina porque foram rompidas todas as possibilidades de rolar a dívida. Na prática, a Argentina já enfrenta um processo de desconfiança internacional e não consegue colocar seus títulos no mercado internacional. A única alternativa pra evitar uma quebra da dívida dos custos internos é emissão. E emitir dinheiro é primo irmão da inflação", ressalta Trevisan.
PIB no azul, mas sem efeito na população
Para 2022, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) projetou em junho um crescimento de 3,57% do PIB da Argentina, enquanto o Fundo Monetário Internacional (FMI) previa, em abril, um aumento de 4%. Os números positivos, no entanto, não se refletem na população, que terá de lidar com a escalada dos preços e perda de renda.
A desvalorização cambial levou o salário argentino a ter um dos menores poderes de compra da região, elevando os índices de pobreza para quase um quarto das famílias e já se fala em congelamento de preços.
"Como a realidade está dura demais, pensaram – mais uma vez – em tentar a mágica completa. Por enquanto, existem só os "preços cuidados", um meio caminho até o congelamento mais completo", afirma Trevisan.
Para o economista, a expectativa é de que a inflação argentina atinja três dígitos neste ano, apresentando forte impacto nas eleições do próximo ano no país vizinho.
Dados recentes da Unicef Argentina indicaram que mais de 1 milhão de crianças não satisfaz suas necessidades básicas de alimentação; cerca de 20% dos argentinos foram obrigados a se endividarem para cobrir despesas diárias; e quase 20% suspenderam a compra de medicamentos.
Na Argentina, crises são rotina
O cidadão argentino é acostumado a crises econômicas. Em 1989 houve hiperinflação seguida de saques; em 1975, conhecida como "el Rodrigazo", que afundou o país em recessão; em 2001, o PIB recuou e o desemprego e a pobreza dispararam, tendo reflexo até hoje na política do país.
Quando Fernández assumiu, em 2020, com sua gestão peronista, substituindo Mauricio Macri, a situação econômica já era ruim: após contrair 2,6% em 2018, naquele ano, o PIB voltou a cair 2% em 2019.
"O Fundo Monetário Internacional em 2018 para 2019 fez o maior empréstimo da sua história, emprestou para o governo argentino 44 bilhões de dólares. Esse volume de empréstimos para realidade argentina, para o contexto argentino, ele é literalmente impagável", comenta Trevisan.
Além do empréstimo, o governo argentino estimulou subsídios para áreas de energia e combustíveis por meio de emissão monetária.
"Argentina vem vivendo desde 2019 um contexto de crise que é consequência de vários momentos em que ela quebrou a confiança dos investidores internacionais, algo que vem desde 1975. Depois dos anos noventa, houve outros calotes, e aí é um país que não consegue aumentar seu investimento de modo interno com a própria poupança e também não recebe investimentos externos que poderiam aumentar a produtividade e os negócios dentro do país, que entra numa crise de pagamentos, gera problemas inflacionários, desabastecimentos, uma maior redução ainda do investimento externo, toda uma sequência de desequilíbrios que vão fazer com que o país empobreça ainda mais", explica Alexandre Pires, professor de Economia e Relações Internacionais do Ibmec-SP.
Macri entregou um país com altos índices de inflação (53,8%) e pobreza (35,3%). Como solução, buscou crédito no FMI, que Fernández teve de renegociar.
A Argentina conta também com déficit em disparada por conta do elevado gasto social, economia informal crescente e pouco dinheiro em caixa para liquidar as contas.
Para piorar, o governo de Fernández enfrenta uma crise política e de legitimidade, o que dificulta ainda mais a efetividade das decisões tomadas pela Casa Rosada.
"Ele [Fernández] herdou essa dívida contraída pelo governo Macri, que fez uma série de acordos com o FMI que não foram cumpridos porque, por exemplo, o acordo previa uma inflação de no máximo 48% para o ano de 2022. Argentina já está em 70% na metade do ano. Pouco importa o ocupante que estiver no governo, o fato é que a Argentina vive uma situação fora do seu controle econômico", lembra Trevisan.
Para afastar a possibilidade de "venezuelar", os economistas apontam que a Argentina precisa realizar uma sequência de ajustes econômicos que levariam a retomada do crescimento de produtividade pra gerar mais renda, para, então, reduzir lentamente a pobreza.
E o Brasil, como fica?
Apesar da famosa rivalidade no futebol, como diz o ditado, "negócios à parte". O Brasil e a Argentina possuem relações comerciais em diversos setores. Até 2021, o Brasil era o principal parceiro comercial dos "hermanos", quando foi ser superado pela China.
Só no ano passado a balança comercial entre os dois países movimentou mais de R$ 100 bilhões. Entre os produtos mais comercializados estão carros e outros itens da indústria automotiva, minério de ferro e grãos.
Alexandre Pires, do Ibmec-SP, lembra que a Argentina, no quesito de parceria comercial, perdeu relevância ao longo dos anos sendo substituída pela China.
"A Argentina já não tem um papel tão grande nessa pauta como tinha no começo dos anos noventa, quando tivemos uma maior aproximação econômica. E aí acaba não afetando tanto a dinâmica da economia brasileira, mas pensando como MERCOSUL, traz dificuldades pra novas negociações e para a expansão dos acordos do bloco com outros países", diz.
Trevisan, da ESPM, lembra que para o próximo ano é esperado esfriamento da economia global e, consequentemente, as relações entre Brasil e Argentina também devem ser impactadas.
"As negociações vão seguir pelo menos acompanhando uma tendência internacional sem sentir tanto a pressão da crise política e da crise monetária".
Para o turismo, no entanto, a Argentina se torna ainda mais atrativa. Com o peso em queda, pode ser o momento perfeito para visitar La Boca, a Casa Rosada ou ir até Ushuaia, na Patagônia. Atualmente, um real equivale a 26,50 pesos argentinos.
Segundo dados do buscador de voos Viajala, Buenos Aires é o segundo destino internacional mais buscado saindo de São Paulo nos últimos três meses, entre maio e julho, ficando atrás apenas de Lisboa, em Portugal.
De acordo com a empresa, as buscas por Buenos Aires aumentaram 163% em relação aos primeiros meses do ano, e o preço médio da passagem de ida e volta caiu cerca de 8%. Nos últimos 3 meses, o preço médio encontrado na plataforma para voos de ida e volta de São Paulo para Buenos Aires foi de R$ 1.789.