Usando uma expressão do Papa Francisco, muito próximo do presidente Alberto Fernández, um ministro do governo argentino desabafou ao ser perguntado sobre a crise política que assola a Casa Rosada: "rezem pela Argentina". O tom foi irônico, mas o pano de fundo é dramático. A renúncia do ministro da Economia, Martin Guzmán, no sábado (2) , não foi uma surpresa para integrantes do Gabinete de Fernández, que agora esperam, sem saber exatamente como isso poderá acontecer — já que o diálogo é praticamente inexistente —, uma recomposição do governo negociada entre o chefe de Estado e sua vice, Cristina Kirchner.
No fim da noite de domingo, depois de um telefonema entre Fernández e sua vice — possível graças à mediação de Estela de Carlotto, presidente das Avós da Praça de Maio — finalmente foi confirmado por meios de comunicação locais o nome de quem assumirá o Ministério da Economia, a economista Silvina Batakis, muito próxima da vice-presidente.
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Alguns já duvidam na Argentina de que Fernández conseguirá completar seu mandato, que termina em dezembro de 2023. Na rede social Twitter, jornalistas de longa trajetória como Maria O´Donnell falam abertamente sobre os riscos que existem hoje no país: "É evidente que este não é o tipo de crise que se resolve com uma mudança de ministro, agora está em jogo a Presidência de Alberto Fernández".
Condicionado pelo poder interno de Cristina, o presidente nunca teve muita margem de manobra e no atual momento vive, opina a grande maioria dos analistas locais, seu pior momento. A saída de Guzmán foi uma derrota política, provocada pelas divergências entre o presidente e sua vice, que já tornou público seu boicote ao governo de quem ela escolheu para ser o candidato da aliança entre peronistas e kirchneristas nas presidenciais de 2019.
O ex-ministro da Economia vinha fazendo uma série de pedidos a Fernández e, segundo fontes, cansou de esperar um sinal verde do presidente para adotar medidas que, confirmam as mesmas fontes, Cristina não pretendia autorizar. Fala-se em reajuste de tarifas de serviços públicos, entre outras.
Depois da derrota nas legislativas de 2021, a vice-presidente, que, na época, culpou Fernández e, principalmente, a equipe econômica, está obcecada em recuperar sua imagem — pesquisas indicam 63% de rejeição — e evitar que o kirchnerismo perca o poder no ano que vem. Ainda acuada por vários processos judiciais, Cristina descolou-se de seu próprio governo em nome de sua sobrevivência política.
Ainda acuada por vários processos judiciais, Cristina descolou-se de seu próprio governo em nome de sua sobrevivência política.
"Fernández pode insistir com sua tropa, ou buscar uma solução negociada [com Cristina]. Se ele quer ficar, o melhor caminho seria negociar", aponta Carlos Fara, diretor da Fara e Associados.
Segundo recente pesquisa da Universidade de San Andrés, 75% dos argentinos desaprovam a gestão de Fernández. Em junho passado, a aprovação subiu de 17% para 20%, mas continua sendo uma das mais baixas da região. A principal preocupação dos argentinos é a inflação (55%), que nos últimos 12 meses chegou a 60%, seguida pela insegurança (39%) e a corrupção (39%). A pobreza, que no ano passado atingia 37% dos argentinos e este ano, segundo estimativas, aumentou, está entre os cinco problemas mais graves que enfrenta o país, de acordo com a mesma pesquisa.
As tensões entre Fernández e Cristina se intensificaram após o revés eleitoral de 2021, e nos últimos meses praticamente paralisaram o governo. A presidente critica publicamente o chefe de Estado, que tenta contornar cada uma das pequenas crises, hoje transformadas numa avalanche que nem mesmo seus ministros mais próximos sabem como será contida. Semana passada, o dólar voltou a disparar, chegando a bater quase 240 pesos, numa corrida cambiaria que, segundo fontes, precipitou a saída de Guzmán.
O ex-ministro escreveu uma longa carta de renúncia, na qual deixou bem claro que quem for seu sucessor precisa ter apoio político para poder tomar decisões. No último domingo, o presidente se reuniu com seu círculo mais íntimo de colaboradores na residência oficial de Olivos, para analisar os próximos passos a seguir. Cristina não participou do encontro. O principal aliado do presidente no momento é Sergio Massa, presidente da Câmara, e terceira pessoa mais importante do governo, que poderia, especula-se, assumir um cargo no gabinete.
"Massa é o único que pode ser nexo entre Fernández e Cristina. É preciso um sinal de que existe consenso sobre um plano econômico e isso é o mais difícil quando temos, por exemplo, kirchneristas pedindo um salário básico universal, algo inviável" afirma Ignácio Labaqui, professor da Universidade Católica.
"Massa é o único que pode ser nexo entre Fernández e Cristina. É preciso um sinal de que existe consenso sobre um plano econômico e isso é o mais difícil quando temos, por exemplo, kirchneristas pedindo um salário básico universal, algo inviável", afirma Ignácio Labaqui, professor da Universidade Católica.
Para o analista, a renúncia de Guzmán gerou dúvidas sobre a sustentabilidade do governo.
"Os 15 meses que restam são muito tempo", enfatiza.
Vários economistas foram sondados, mas Fernández estaria tendo dificuldades para conseguir um novo ministro. As permanentes tensões com Cristina são o principal obstáculo. A vice é contra o acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI) e pretende que o governo evite ajustes considerados fundamentais por especialistas para evitar um descontrole fiscal. O dilema de Fernández é, basicamente, delegar totalmente o poder ou governar isolado do kirchnerismo, que passaria a ser oposição.
O peronismo tem, tradicionalmente, o controle da maioria dos sindicatos e movimentos sociais que, em governos não peronistas, pressionam nas ruas. A grande dúvida é saber até quando setores que o peronismo não domina - classe média e produtores rurais, principalmente - continuarão desmobilizados. Representantes do campo convocaram uma greve geral para o próximo dia 13. O silêncio das ruas favorece Fernández, mas isso, alertam especialistas, pode mudar a qualquer momento.