Aprovado na última quarta-feira (1º) pela Câmara dos Deputados, o projeto de lei que cria um novo marco de garantias no país pode transformar em pesadelo o que seria um novo caminho para melhorar o acesso ao crédito ao consumidor, principalmente o de baixa renda.
O alerta foi dado por especialistas ouvidos pelo GLOBO, que demonstraram preocupação com a possibilidade de um um único bem imóvel familiar passar a ser usado como garantia em operações de financiamentos diferentes, ou seja, em dois ou mais empréstimos.
O projeto foi apresentado pelo Executivo em novembro do ano passado e ainda precisa passar pelo Senado, antes de ir à sanção presidencial. Para a coordenadora do programa de serviços financeiros do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Ione Amorim, se aprovado, o texto afetará diretamente a Lei da Impenhorabilidade, que determina que uma família não pode dar em garantia o seu único bem imóvel, senão para o seu próprio financiamento.
"Isso significa que o bem imóvel, que não poderia ser tomado em nenhuma circunstância, salvo no inadimplemento do financiamento imobiliário, passa a servir de garantia na obtenção de outras modalidades de crédito, como o crédito pessoal, muitas vezes sem destinação específica, solicitado apenas para pagar outras dívidas bancárias. A proposta visa atender aos interesses das instituições financeiras, que buscam garantias para a expansão de crédito no país, vulnerabilizando ainda mais os consumidores", afirmou.
Ela enfatizou que, quando o bem é dado em garantia em mais uma operação de crédito, aumenta o risco para o consumidor, que tem maiores chances de perder a sua casa.
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Do ponto de vista econômico, completou Ione Amorim, a medida é bastante preocupante, uma vez que a crise financeira internacional de 2008 aconteceu justamente por essa razão: cidadãos americanos tomavam créditos sucessivos concedendo o mesmo imóvel como garantia, criando uma valorização irreal.
Outro ponto destacado pela representante do Idec diz respeito à possibilidade de renegociação coletiva de dívidas, prevista pela Lei do Superendividamento, em vigor há quase um ano. Segundo ela, tal previsão não é válida para os contratos de crédito com garantias reais, como é o caso dos bens imóveis.
"Ou seja, o consumidor que contrair um empréstimo nesses moldes tem menos chances de renegociar a dívida, aumentando a possibilidade de superendividamento", concluiu.
O texto aprovado na Câmara prevê a criação de um serviço de gestão especializada por meio das Instituições Gestoras de Garantia (IGGs), a serem regulamentadas pelo Conselho Monetário Nacional (CMN). Caberá às IGGs avaliar o valor das garantias dadas e, com base nesse valor, as instituições financeiras poderão definir um montante adequado de crédito a ser tomado pelo interessado.
Além disso, ficará a cargo dessas empresas, entre outras atribuições, a venda de bens, caso a dívida seja executada.
Para o especialista em Direito do Seguro e sócio do escritório Ernesto Tzirulnik Advocacia, Vitor Boaventura, o marco das garantias é uma falsa promessa de melhoria das condições de acesso ao crédito para a população. Segundo ele, o Congresso Nacional aceita há anos e passivamente a cobrança de juros exorbitantes da população vulnerável e de menor renda.
"Lamentavelmente, o que se criou foi mais um instrumento que beneficia as instituições financeiras em detrimento da população que, pressionada pela redução na renda e a inexistência de políticas efetivas de acesso ao crédito, se vê cada vez mais superendividada para sobreviver. Ao permitir que um imóvel seja oferecido como garantia a mais de uma instituição financeira, o projeto ameaça o equilíbrio sistêmico, o que poderia fragilizar ainda mais a combalida economia brasileira", afirmou.
Advogado e ex-diretor do Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor do Ministério da Justiça, Ricardo Morishita avalia que o acesso ao crédito é importante, assim como medidas que possam reduzir os juros. No entanto, acredita que o texto pode acelerar o endividamento no país.
"Pode ser uma medida que acabe acelerando a situação de superendividado, comprometendo ainda mais seus direitos. Caminhamos para transformar o direito à moradia em uma relação meramente de obrigações", disse Morishita.
Coordenador do Núcleo de Defesa do Consumidor da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, Eduardo Chow defende a garantia da impenhorabilidade do bem de família. Ele argumenta que esta é uma forma de proteger o mínimo existencial da pessoa e a dignidade da vida familiar.
"Em um país subdesenvolvido e empobrecido, vilipendiar direitos mínimos dos mais carentes em favor dos mais ricos e poderosos, como os bancos, não parece ser uma forma adequada de avançarmos em direção à redução das desigualdades abissais em nosso país".
Chow enfatizou que o aumento de endividados e superendividados no Brasil, com os atuais índices de inadimplência, induzem inadequadamente a "soluções imediatistas', como forma de se viabilizar o aumento do crédito e a possível redução de juros.
Citou como exemplo a autorização de empréstimos consignados em auxílios assistenciais de pessoas miseráveis e, agora, a tentativa de acabar com a impenhorabilidade do bem de família.
"A longo prazo, a injustiça de decisões como essas acabam por penalizar somente os mais miseráveis de nossa sociedade, que perderão tudo o que possuem hoje para sobreviver em prol de um suposto juro reduzido que não irá beneficiá-los".