Consumidores têm direitos ameaçados na pandemia
Redação 1Bilhão Educação Financeira
Consumidores têm direitos ameaçados na pandemia

Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que o mundo vivia uma pandemia. Dois anos depois, regras criadas para amenizar os efeitos da crise para as empresas e, em paralelo, projetos de lei que podem mudar direitos de clientes de produtos e serviços ameaçam deixar um legado de retrocessos para os consumidores. Isso às vésperas do Dia Nacional do Consumidor, no próximo dia 15, quando completa 60 anos.

Leis que foram editadas no auge da crise para evitar uma quebradeira de empresas de turismo e do setor de eventos, preservando, assim, a oferta de serviços aos consumidores a médio e longo prazos, foram prorrogadas até o fim do ano que vem.

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É o caso da medida provisória (MP) 1.101, publicada no mês passado, que estende até dezembro de 2023 a lei 14.034/2020, permitindo a retenção, por até 12 meses, dos valores de reembolso de voos cancelados pelas companhias aéreas.

A regra prevê ainda a aplicação de multas contratuais ao consumidor que quiser cancelar a viagem, mesmo que por causa da pandemia, impondo o prazo de 12 meses para ressarcimento.

A mesma MP também amplia a validade da lei 14.046/20, que desobriga empresas de eventos e turismo a fazerem reembolso em dinheiro ao consumidor em caso de cancelamento, desde que ofereçam remarcação ou crédito.

"Isso mexe no eixo da estrutura legislativa que até aqui foi formulada para proteger a pessoa. E o risco é que possa vir a se repetir. As leis são feitas para os momentos de exceção. Essas medidas impõem ao consumidor todo o ônus, quando o socorro às empresas deve vir do Estado e não do cliente, que é a parte mais frágil dessa relação", diz o professor de Direito do Consumidor Ricardo Morishita, ex-diretor do Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor (DPDC), do Ministério da Justiça.

‘Cultura de desobediência’

Juliana Pereira, ex-secretária Nacional do Consumidor, considera aceitável adotar medidas atípicas durante catástrofes, como a pandemia. Mas ressalta a importância de retomar a proteção anterior assim que tudo se normalizar:

"A Constituição definiu que é dever do Estado assegurar o respeito à vulnerabilidade do consumidor."

Quando as medidas foram prorrogadas, a Associação Brasileira dos Agentes de Viagem (Abav) ressaltou em nota que elas eram necessárias para a recuperação da saúde financeira do setor. “Era urgente essa nova atualização da lei”, afirmou em nota a presidente da Abav Nacional, Magda Nassar.

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Para a advogada Marié Miranda, diretora do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon), o maior risco está na tramitação do projeto de lei 533, que cria a figura da chamada pretensão resistida.

Com isso, na prática, em caso de problemas, o consumidor só poderia recorrer à Justiça após comprovar a tentativa de acordo com a empresa.

"Não se pode impor a conciliação, até porque muitos consumidores vão à Justiça porque não conseguem falar com a empresa quando têm problemas. Reduzir a judicialização é uma responsabilidade do Judiciário, e ele não tem tido sucesso. Para tanto, precisaria impor punições a empresas que desestimulassem práticas abusivas. Desde os anos 2000, cobrança indevida é uma queixa frequente. Por que isso continua? Porque as empresas já fizeram a conta, e vale a pena", diz a diretora do Brasilcon.

Diretor de Relações Institucionais do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Igor Britto pondera que, apesar de as ações de consumo liderarem o ranking da Justiça estadual cível e dos juizados especiais, isso não reflete um comportamento nocivo do consumidor:

"Os dados indicam uma cultura de desobediência da legislação de consumo por parte de grandes fornecedores, não uma cultura de litigiosidade por consumidores."

Procons mais restritos

O sistema de proteção do consumidor também estaria ameaçado pelo decreto 10.887, de dezembro de 2021, que, segundo especialistas, reduz a capacidade punitiva dos mais de 900 Procons do país, ao centralizar na Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) o poder sancionatório.

"O decreto cria uma série de entraves à aplicação de sanções pelos Procons, como se sua atuação fosse um entrave à economia do país. O sistema foi pensado com atuação concorrente de órgãos de União, estados e municípios. Não faz sentido estabelecer, por exemplo, que uma empresa autuada por diferentes Procons só possa ser autuada por um deles. É como se quem cometesse crimes na Bahia e em São Paulo só pudesse ser julgado e punido em uma localidade", diz Marcelo Nascimento, presidente da Associação Brasileira dos Procons (Procon Brasil). 

Procurada, a Senacon, do Ministério da Justiça, não quis comentar.

Confira as ameaças na visão de especialistas

  • Aéreas: A medida provisória 1.101/2022 estende até 31 de dezembro deste ano a regra que permite que voos cancelados nesse período possam ter o crédito usado até o fim de 2023 e reembolso em até 12 meses. Em caso de cancelamento pelo cliente, serão aplicadas multas previstas no contrato, com ressarcimento em 12 meses.
  • Eventos e shows: A MP também amplia a validade da lei 14.046, que desobriga as empresas a fazerem reembolso em dinheiro em caso de eventos cancelados, desde que ofereçam alternativas de crédito e remarcação.
  • Sistema de proteção. O decreto 10.887/2021, dizem especialistas, esvazia o poder de multa dos Procons, buscando centralizar o poder sancionador no governo federal.
  • Justiça: O PL 533 institui a figura da pretensão resistida. Só se poderá ir à Justiça se provada tentativa de acordo com a empresa. A medida, dizem, restringe o acesso à Justiça, já que muitas ações ocorrem exatamente pela dificuldade de contatar a empresa.


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