E se não fosse o "fica em casa"? Será que a inflação estaria melhor?
Retrospectiva 2021: relembre todos os fatores que levaram a um aumento dos preços no país
Quase dois anos depois do primeiro caso de infecção pela Covid-19 no Brasil — confirmado pelo Ministério da Saúde no final de fevereiro de 2020 —, o país sofre com os efeitos da pandemia não só na Saúde, como também na Economia. E essa vem sendo a principal desculpa do presidente Jair Bolsonaro (PL) para explicar a alta dos preços. No mês passado, durante uma entrevista a uma rádio no Espírito Santo, o presidente voltou a afirmar genericamente que "o preço está alto também em função do 'fique em casa, a economia a gente vê depois'".
O IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo), que mede a inflação oficial do país, fechou novembro em 9,26%, segundo dados mais recentes do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). No acumulado nos últimos 12 meses, a fração já chega a 10,74%. A realidade é muito acima da meta estipulada pelo Conselho Monetário Nacional (CMN), do Banco Central, que era de 3,75%, com variação de 1,5 ponto percentual para cima ou para baixo (2,25% até 5,25%).
De fato, 2021 foi um ano excepcional. A última vez que a inflação havia alcançado os dois dígitos havia sido em 2016, durante a gestão de Dilma Rousseff (PT) e o início do governo de Michel Temer (MDB). Em 2019 — último ano pré-pandemia e primeiro do governo Bolsonaro —, a inflação foi de 4,31%, acima da meta do CMN (4,25%), mas ainda dentro do limite de variação de 1,5 ponto percentual para cima ou para baixo. Naquela ocasião, o salário mínimo no Brasil era de R$ 998. A cesta básica, por sua vez, custava em média R$ 443,20, segundo levantamento do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) realizado em 17 capitais.
Em 2020, a situação não foi muito diferente. Pelo menos, não para a inflação. O IPCA acumulado entre janeiro e dezembro do ano passado foi de 4,52%. O índice também ultrapassou a meta do Conselho Monetário, que era de 4%, porém dentro do limite de variação (2,5% e 5,5%). Há um ano, o salário mínimo era de R$ 1.045, e os gastos com cesta básica ficavam na casa dos R$ 544,51. Hoje, o piso salarial é de R$ 1.100, e a cesta aumentou para R$ 593,73, como apontam os dados levantados pelo Dieese em novembro.
A inflação acumulada entre janeiro de 2019 e novembro de 2021 é de 19,12%. Para comprar as mesmas coisas que comprava com um salário mínimo há dois anos (R$ 998), o trabalhador deveria receber pelo menos R$ 1.188,79 atualmente. Já desde o início da pandemia (março de 2020), o IPCA acumula uma alta de 13,68%.
Mas o que explica a inflação mais alta em 2021?
Antes de mais nada, é preciso entender como a inflação é medida. O IBGE usa vários índices para calcular o reajuste nos preços dos bens e serviços no Brasil. O mais comum deles é o IPCA, que mede a variação do custo de vida médio de famílias com renda mensal de 1 a 40 salários mínimos. O levantamento é feito nas grandes regiões do país, especialmente nas áreas urbanas.
Dito isso, também é importante destacar que vários fatores pressionaram os preços em 2021. O aumento na demanda, a crise hídrica, a alta dos combustíveis e a desvalorização do real frente ao dólar são alguns deles. Falando especificamente de oferta e demanda, que realmente sofreram as consequências da pandemia de Covid-19, o economista e professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Elton Eustaquio Casagrande, explica como isso se deu.
"A pandemia interrompeu a lógica do trabalho pelo distanciamento, pela imposição de regras de não circulação e, mais do que isso, pelos fechamentos de atividades, de praças públicas, de cidades, interrupção com horários etc. Então, ainda em 2020, depois de passados alguns meses de restrição, a atividade econômica no Brasil e no resto do mundo começa a ser retomada, e o que acontece é que a demanda por insumos, por bens, por elementos industriais aumenta, e a oferta não está preparada para responder na mesma intensidade e velocidade", afirma.
"Uma empresa de grande porte, quando faz um reajustamento das quantidades que vão ser vendidas, não consegue aumentar de um semestre para outro. Ela depende da exploração, produção, processamento de minérios, de metais, enfim, de uma série de elementos. O que acaba acontecendo é especulação, atrasos, limitação de entregas, e o produtor, que tem o domínio e a mercadoria, tem a liberdade para fixar preços. Então, se quiser comprar o produto, vai pagar mais caro. A concorrência diminuiu, então, com menos concorrência, aqueles que ficaram em pé estão recuperando a margem de lucro cobrando mais", completa.
É claro que esse fenômeno não é exclusividade do Brasil. Mas nós devemos fechar o ano com uma inflação maior que a de 83% dos países. Por quê? Justamente pelos motivos citados anteriormente. Entre eles, está a escassez de chuvas. Em 2021, o Brasil passou pela pior seca nos últimos 91 anos, e isso levou a um desabastecimento nos reservatórios das principais hidrelétricas do país, responsáveis por mais da metade da geração de energia elétrica em todo o território. Para atender a demanda, o governo decidiu acionar fontes mais caras, como as usinas termelétricas, o que levou a um aumento nas contas de luz.
A seca também prejudicou a produção de alimentos. A mesma escassez de chuvas derrubou colheitas importantes para o Brasil, como as do café, do açúcar e do tomate. Carnes e ovos também foram afetados. Como resultado, as comidas ficaram 12,54% mais caras no acumulado de 12 meses até outubro de 2021. Esse encarecimento também é resultado da alta das commodities — bens primários — no mercado internacional.
O mesmo aconteceu com o petróleo, que também subiu de preço lá fora. Muitas vezes, a transformação do petróleo em seus derivados é realizada pela Petrobras em algumas frentes no exterior. Por isso, desde 2016, a estatal baseia seus custos não só no mercado interno, como também na oscilação do preço do barril no mercado internacional. Por conta disso, a gasolina já acumula uma alta de 73% desde o começo do ano, e o diesel, de 65,3%. O gás de cozinha também ficou 37,19% mais caro.
Por último, mas não menos importante, temos o aumento do dólar, que já há algum tempo ultrapassou a casa dos R$ 5. Diante das dificuldades de superação da crise sanitária de Covid-19 e das incertezas quanto à retomada econômica, o Brasil foi perdendo a confiança de investidores estrangeiros. Como nós dependemos de insumos importados e estamos em escassez, com a taxa de câmbio elevada, o resultado só poderia ser uma inflação alta.
Se não fosse o isolamento social, a situação poderia estar melhor?
A resposta para essa pergunta é "não muito". Simples assim. "Não é correto afirmar que o 'fica em casa' fez isso porque o que fez ficar em casa foi uma questão de saúde pública, que só poderia piorar se as taxas tivessem crescido acima do número já exorbitante que está. Saúde também é mercado de trabalho, a oferta depende de pessoas saudáveis trabalhando. Então, se você fragiliza esse ponto também, o que resta?", questiona Elton Casagrande.
Desde o início da pandemia, o Brasil já registrou 22,2 milhões de casos e 618 mil mortes pela Covid-19. Durante muito tempo, o isolamento social foi a melhor maneira de conter a disseminação do vírus. Uma pesquisa realizada pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em parceria com a Universidade do Texas, avaliou os impactos econômicos agregados nos municípios de São Paulo afetados pela pandemia. Os resultados mostraram que não existem evidências de que aqueles que realizaram o isolamento de forma mais severa tiveram um pior desempenho econômico do que os outros.
Copom eleva Selic para 9,25%, maior índice desde 2017
No dia 8 de dezembro, o Comitê de Políticas Monetárias (Copom) do Banco Central reajustou a taxa básica de juros, a Selic, para 9,25%, como uma forma de controlar a inflação. A ideia é que, com os juros mais altos, as pessoas desistam de fazer empréstimos e financiamentos e, consequentemente, comprem menos. Com a diminuição da demanda, a oferta aumenta, e os preços ficam mais baixos.
Mas, na opinião do especialista em Administração Pública e também professor da Unesp, Alvaro Martim Guedes, isso não deve resolver. "Isso é suficiente para remunerar fatores, mas não para segurar a inflação. Claro, tem um efeito anti-inflacionário, mas o limite disso não é controlar a inflação. Controlar a inflação depende de outros fatores que estão muito além da política do Banco Central".
"Do ponto de vista daa administração pública, o que seria mais importante para nós é a administração da dívida, financiamento é dívida", continua.
Já o economista tem uma visão um pouco mais otimista. "Eu espero muito que a Selic mais alta impacte na inflação, porque, senão impactar, a gente vai ter uma dupla dose de problemas. A taxa de juros está pensada para a demanda, para inibir o consumo. Se as pessoas não comprarem, os produtos ficam nas prateleiras. Isso leva a um reajustamento dos preços finais, mas também pode diminuir o lucro empresarial ou provocar desemprego — o que é mais provável".
"Agora, a inflação deve entrar em declínio a partir de março ou abril do ano que vem. O efeito de elevar os juros é muito forte. Então, sabe o que vai acontecer? As pessoas vão pensar três vezes antes de fazer um financiamento ou um empréstimo, vão ser desencorajadas", pontua.
O que o governo poderia fazer agora para controlar a inflação?
Jair Bolsonaro enfrenta um grande desafio para 2022, ano em que disputa a reeleição para presidente. O seu maior oponente, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), vem liderando as intenções de voto, com 48% para o primeiro turno, frente aos 22% de Bolsonaro, segundo aponta uma pesquisa do Datafolha divulgada no último dia 16. Para três em cada quatro brasileiros, o governo atual tem responsabilidade pela alta da inflação nos últimos meses, e para 71% também é ao menos parcialmente responsável pelo aumento do desemprego no país.
"O grande problema é esse: o governo declarou um programa neoliberal e não seguiu a cartilha que se propôs a fazer. O que nós estamos vendo é o resultado de uma política econômica contraditória. Isso paralisa a atividade econômica, aumenta o grau de incerteza para o futuro, e as expectativas dos investidores em geral ficam diminuídas. O governo terminou o terceiro ano de mandato com uma disputa eleitoral antecipada, e no ano que vem, tudo indica que vamos estar na mesma situação: em compasso de espera", avalia o professor Alvaro Martim Guedes.
Nós perguntamos para os especialistas o que eles achavam que a equipe econômica do governo federal deveria fazer para tentar controlar a inflação, e a resposta que recebemos é que 'não é tão fácil assim'.
"Aqui nós temos uma economia fortemente indexada. Para controlar a inflação, primeiro, precisamos de uma recuperação econômica internacional e, depois, de uma estabilidade do valor da moeda. Isso não acontece em um curto prazo, nenhum dos dois. Então, não vai acontecer agora em 2021, e é pouco provável que aconteça em 2022. Mesmo que a gente já tenha perdido a memória inflacionária, ela ainda está presente na indexação", opina Martim Guedes.
"Nesse momento, é muito difícil, porque a gente teria que ter uma política em outro mercado que a gente chama de mercado internacional de moeda, isto é, deveríamos apreciar o câmbio. Esse movimento de redução do gasto em reais para comprar o dólar — portanto, uma apreciação cambial, ajudaria a gente a importar coisas, diminuir o custo de produção e diminuir a competição com produto estrangeiro. Só que isso causa efeito no emprego. Toda vez que a gente compra produtos no exterior, a gente não produz", diz Casagrande.